terça-feira, 3 de novembro de 2015

coisas da língua portuguesa... autofagias...?

pronúncias
A ambição da língua portuguesa é poder ser falada sem necessidade de abrir a boca. A manter-se a tendência, chegará um tempo em que será incompreensível até para os próprios portugueses. 


no observador...


17 Outubro 2015
José Carlos Fernandes


A ambição da língua portuguesa é poder ser falada sem necessidade de abrir a boca. A manter-se a tendência, chegará um tempo em que será incompreensível até para os próprios portugueses. 


"Os portugueses costumam estranhar que compreendam sem dificuldade o português falado no Brasil e o espanhol, mas que brasileiros e espanhóis não sejam capazes de perceber o português de Portugal. Esta falta de reciprocidade é, muitas vezes, atribuída, ao “jeito natural para as línguas” dos portugueses (um atributo imaginário que faz parte da nossa auto-imagem) e a uma suposta incapacidade congénita de brasileiros e espanhóis para compreenderem e se expressarem noutras línguas.

Mas se fizermos um pequeno esforço de abstracção e distanciamento e nos ouvirmos de forma analítica, emerge uma explicação mais plausível: a pronúncia do português falado tende a ser impenetrável. Em contraste com o português do Brasil e o espanhol, a maior parte das sílabas do português de Portugal são fechadas e os “s”, em vez de sibilarem, soam como “ch” e “j” (o que os brasileiros pronunciam como “áss óbráss”, nós pronunciamos como “ajóbraje”).

O website do Instituto Camões, ao comparar a fonética das pronúncias do português dos dois lados do Atlântico, indica que “a mais notória diferença em relação ao Português do Brasil diz respeito às vogais não-acentuadas que são muito mais audíveis no Português Brasileiro do que no Europeu, sendo, nesta variedade, muito reduzidas, o que leva, por vezes, à sua supressão. Esta característica do Português Europeu tem como consequência que os estrangeiros compreendem melhor a pronúncia de um brasileiro do que de um português, sentindo, neste último caso, que a língua parece ter só consoantes”. Como pode um brasileiro perceber que o som “froch” emitido por um português corresponde à palavra “feroz”, que do outro lado do Atlântico se pronuncia como “féróiss”?

Quando um grupo de portugueses se desloca ao estrangeiro, alguém que os ouça falar entre si e não tenha familiaridade com o português, é tentado a atribuir-lhes origem, não latina, mas eslava. A sugestão poderá parecer tonta, mas a inaudibilidade das vogais e a abundância dos sons “j” e “ch” explica a confusão.

Um dos momentos mais inspirados do website de fake news The Onion surgiu no rescaldo dos conflitos nos Balcãs, com o anúncio pelo Presidente Clinton de uma operação humanitária de emergência na Bósnia, consistindo no envio de dois C-130 que iriam fazer o lançamento de 75.000 vogais, de maneira a tornar os nomes locais mais fáceis de pronunciar. Com efeito, a toponímia e a onomástica da ex-Jugoslávia são avaras em vogais: na Croácia temos a ilha de Krk, na Bósnia-Herzegovina encontramos a cidade de Brčko e as aldeias de Crnač, Crveni Grm, Crveno Brdo, Dvrsnica, Podcrkvina, Trnčići, Tršće e Tvrtkovići, e, claro, a Republika Srpska, a entidade sérvia da Bósnia-Herzegovina. A onomástica bósnia também é parca em vogais: na Idade Média houve dois reis bósnios com o nome de Tvrtko e, em tempos mais recentes, há a assinalar um futebolista chamado Tvrtko Kale, que quando foi jogar para Israel mudou, compreensivelmente, o nome para Dreshler Kale.

No servo-croata há vocábulos como “crkva” (igreja), “mrkva” (cenoura) “trg” (mercado), “žrtva” (vítima) ou “opskrbljivač” (fornecedor); a língua checa tem “zmrzlina” (gelado), “smrt” (morte), “prst” (dedo) ou “čtvrtek” (quinta-feira); o eslovaco, que partilha muito vocabulário com o checo, tem “štvrt” (um quarto – no sentido de 1/4) ou “prš” (chuva), podendo revelar-se, no modo imperativo, de uma secura desencorajante, com “vrč” (rosna), “plň” (enche), “strč” (põe ou coloca) e “mlč” (cala-te).

Assim, diz-se “parlijmo” por “paralelismo” e “perlema” por “problema”. Mais uns anos por esta senda e “paralelismo” e “problema” ficarão reduzidos a “prljmo” e “prlma” 
 
Mas o caso de Portugal é bem diferente: dificilmente poderia mobilizar-se uma operação internacional de fornecimento de vogais a um país que as possui em abundância mas faz pouco caso delas e até suprime sistematicamente sílabas, sobretudo quando as palavras são longas. Assim, diz-se “surjão” por “cirurgião”, “dzenvlemento” por “desenvolvimento”, “eletsista” por “electricista”, “chtrordnário” por “extraordinário”, “lejlação” por “legislação”, “majtratura” por “magistratura”, “parlijmo” por “paralelismo”, “perlema” por “problema”, “persamento” por “processamento”, ou “sialista” por “socialista”. Mais uns anos por esta senda e “paralelismo” e “problema” ficarão reduzidos a “prljmo” e “prlma”.

O fenómeno é agravado pela voga de descartar a acentuação que distingue, na 1.ª pessoa do plural dos verbos da 1.ª conjugação (terminação em “ar”), o pretérito perfeito do presente e que leva a que se diga “Ontem jantamos muito tarde”, ou “Tratamos desse assunto na reunião da semana passada”. O inenarrável Acordo Ortográfico de 1990 (AO90), invocando este uso oral cada vez mais generalizado, aproveitou para tornar facultativo o uso do acento agudo nesta situação. Daqui resulta que a frase “matamos o cão” passa a designar, indistintamente, algo que aconteceu (quiçá por acidente) e aquilo que decidimos fazer agora, o que dá ideia da confusão adicional que estes usos e estas “regras facultativas” trazem à forma nebulosa como comunicamos.

Os entusiastas do AO90 alegam que o acordo tornará mais fácil a aprendizagem do português, o que não só é um argumento falacioso (para atingir esse fim melhor seria apostar no Português Simplificado para SMS, expurgado das irregularidades, complexidades e idiossincrasias que fazem parte da natureza de cada língua), como não toma em consideração que, com ou sem acordo, o sério obstáculo para os estrangeiros é depararem-se com uma língua que soa frequentemente como móveis a serem arrastados ou papel a ser amarrotado.

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