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sábado, 21 de julho de 2012

crónica... da (des)virtualização da cultura... e da crise moral em portugal... de manuel maria carrilho... no dn...!

"A FARSA, DEPOIS DA TRAGÉDIA - A pergunta que agora surge nos lábios de toda a gente é pela confiança que resta, depois de tanta trapaça. Não era imprevisível, mas era bem dispensável a nova fase da crise em que assim entrámos, pisando as areias movediças de uma verdadeira crise moral.

Crise que vem agudizar todas as suspeitas que já se alimentavam sobre o poder, reforçando a corrosiva desconfiança com que os cidadãos olham para as suas elites dirigentes - sobretudo políticas, mas também económicas e financeiras - e para o continuado, persistente fracasso da sua ação.

Quando a história se repete, dizia Marx, depois da tragédia vem a comédia. Assim é, mais uma vez. Mas ao transformar a tragédia da licenciatura de José Sócrates numa comédia, Miguel Relvas faz mais: ele banaliza o que ainda assim se supunha excecional, reforçando o dano brutal que tudo isto tem causado ao País. Arrastando assim a classe política para um patamar inédito de descredibilização, como se toda ela se dividisse entre suspeitos e culpados, entre cúmplices e reféns.

Esta farsa evidencia diversos aspetos que mereciam a maior atenção, nomeadamente a bagunça que - com uma ou duas exceções, não mais - tomou conta do ensino universitário privado português, quantas vezes com a cumplicidade bem paga de nomes sonantes do ensino público. Mas o sinal mais aterrador, porque esse é um sinal do futuro que nos espera, é o silêncio quase unânime da classe política, como se nela ninguém fosse já livre de soletrar o que é absolutamente óbvio.

Os perigos que ameaçam a política nunca foram, por isso, tão grandes. Como escreveu no seu magnífico Dicionário Imperfeito Agustina Bessa-Luís, "politizar sem primeiro instruir provoca a intervenção do mais grosseiro rosto dos desejos humanos. Aparece a cupidez e a insolência e por aí adiante". Se não queremos ir por aí adiante, só há um caminho: o de impor rapidamente à política novos critérios de qualificação e de ética.

Claro que o Partido Socialista, que em tudo devia ser uma alternativa de valores a esta deriva rente ao abismo do descrédito, paga hoje a complacência com que cobriu as falcatruas e os desmandos socráticos, sem autoridade moral para dizer o que - em nome da mais elementar decência! - todos os portugueses lhe pedem que fosse dito.

GRANDES HOMENS - Nestas alturas, é normal que se lamente com nostalgia o desaparecimento dos grandes homens e a falta de autênticas ideias. O que se compreende porque, como dizia Renan, os homens não conseguem viver muito tempo do perfume de um frasco vazio... Mas este lamento ignora o essencial, que convém lembrar.

E o essencial é, em primeiro lugar, que o processo da seleção dos líderes se alterou completamente na atual era mediática, que produz vedetas e slogans, mas exclui singularidades e valores, inventa metáforas mas não propõe visões do mundo. Qualquer dos grandes líderes invocados pela habitual nostalgia contemporânea (Roosevelt, De Gaule, Churchill, etc.) seria laminado em dois minutos - como nulo! - pelos media hoje dominantes.

E em segundo lugar, quanto às ideias, o problema não é o de não as haver - as ideias até abundam! -, mas o de elas não passarem nos crivos e nos filtros, seja da seleção mediática obcecada com os diretos, os sound bites e os fait-divers, seja do conformismo partidário fechado na campânula dos seus jogos e interesses.

A democracia de opinião que hoje domina vive, como vemos todos os dias, de superficialidades bacocas e de imediatismos rapsódicos, excluindo intencionalmente qualquer porta de entrada ou momento de atenção aos "grandes homens" ou às "verdadeiras ideias". A conceção heroica - ou épica - da política não resistiu a uma democracia de opinião que vive cada vez mais na autojubilatória comunhão da mediocridade com a alacridade, que é incompatível com a linguagem do apelo e das causas, que sempre caracterizaram os "grandes homens".

E o momento não é para ilusões, porque as crises - ao contrário das guerras - não criam líderes, antes os destroem em série. Nesta perspetiva, a "normalidade" reivindicada por François Hollande, como candidato e depois já como Presidente da República francesa, aparece como um eloquente sinal da época que vivemos, como se as democracias tivessem desistido - transitoriamente ou não, é o que veremos - de lideranças mais carismáticas.

Não há de facto, na Europa de hoje, nenhuma personalidade carismática. Resta saber se este facto historicamente inédito, da vitória da normalidade sobre o carisma, não traduzirá - como parece ser o caso - uma também histórica falta de visão estratégica, de que a desorientada indolência da União Europeia tem sido um desesperante exemplo.

SEM CULTURA - Evito quase sempre falar do que não existe: é uma regra que permite evitar muitos equívocos. Daí, o meu silêncio sobre política cultural. Mas é preciso recuar bem para lá do 25 de Abril para se encontrar uma combinação tão grotesca de incompetência, ineficácia e incúria, como a que nesta área caracteriza o atual Governo.

E também aqui a mentirola prolifera. Como se sabe, Portugal é um dos três únicos países da União Europeia (com Malta e a Hungria) que não tem Ministério da Cultura. Ora, o secretário de Estado da Cultura, Francisco José Viegas, deu uma entrevista no domingo passado ao DN, ao que parece para anunciar que, com 0,1% do Orçamento do Estado, "ainda não se atingiu o limite para os cortes na cultura"!... E aproveitou a ocasião para tentar enganar os leitores, insinuando que em Espanha também se extinguiu o Ministério da Cultura, e que a tendência é essa, blá-blá-blá.

Acontece que em Espanha há de facto um Ministério da Cultura, associado ao da Educação e ao do Desporto, cujo titular é J. I. Wert Ortega. E que, para lá disso, Portugal é mesmo o único país da União Europeia em que a Cultura não tem sequer assento no respetivo Conselho de Ministros.

E isto não é uma questão formal, mas de fundo e da maior importância, uma vez que tal significa que nos debates e nas delibe-rações do Conselho Ministros de Portugal, sobre todas as matérias que dizem respeito ao País, não há, não se tem em conta, não se mobiliza o ponto de vista da cultura. Eis um retrocesso político sem razão nem perdão, cujas devastadoras consequências estão já, de resto, bem à vista de todos
."

daqui.

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