(…) PARECE paradoxal: nunca, como
hoje, nos sentimos tão inundados de informação. E nunca, como agora,
soubemos tanto e tão bem o que se passou. Mas nunca, como hoje, os
cidadãos se sentem perdidos no meio de tantos dados, tantos números,
tantos factos e tantas medidas! A crise actual é responsável por esta
situação. As dificuldades são tais, que a informação não gera
necessariamente conhecimento; e nem sempre o conhecimento permite a
compreensão.
Com este trabalho sobre os “25 anos de
Portugal europeu”, quer a Fundação Francisco Manuel dos Santos olhar
para esta dimensão essencial da nossa história recente. As perguntas são
simples: Que fez a Europa de Portugal? Como reagiu Portugal a este seu
novo estatuto? O que mudou em Portugal? Para melhor ou pior? Que outras
influências conhecemos nós durante estes anos?
A Europa não foi para nós apenas a União. Foi
certamente a geografia e a cultura. Foi o continente, mas foram também
as suas nações. Foi a Comunidade, mas também a União e o Euro.
Sabemos agora que a nossa integração europeia
teve as suas fases, os seus ciclos. Sabemos hoje que foram três ou
quatro, a começar pelo desejo e pela esperança dos anos sessenta e
setenta. E sabemos que a primeira fase foi euforia, acompanhada de
oportunidades e de crescimento. Mas que a estes sucederam a inquietação,
a incerteza e a crise.
Os últimos anos, com a sua crueza de crise e
austeridade, revelaram uma Europa que, há trinta anos, não
ambicionávamos e que, há vinte, não esperávamos. Foi uma má surpresa,
mas a face escondida da Europa esteve sempre lá. Só que a não víamos.
Hoje quase só a vemos. E se é para a Europa que olhamos, para exigir
responsabilidades, também é para a Europa que nos dirigimos para
reclamar coesão.
A Europa foi um excesso de aspirações. É hoje
um desapontamento desmesurado. Mas nem tudo se deve à Europa. Nem tudo o
que de progresso se verificou nos anos sessenta a oitenta se ficou a
dever à Europa. Nem tudo o que de crítico ocorreu nos anos noventa e nos
primeiros do século XXI foi por causa da Europa. Os nossos erros, as
nossas políticas desajustadas e os nossos defeitos são seguramente os
principais responsáveis.
Na crise, procuramos as origens.
Insuficiência estrutural? Deficiências políticas? Fragilidade
inultrapassável? Estudar o que se passou é indispensável para corrigir e
preparar os próximos ciclos. Nas nossas dificuldades, será sempre
indispensável saber onde estão as reais responsabilidades. Nas políticas
internas? Nas circunstâncias externas? Nos comportamentos das famílias e
das empresas? Nas atitudes dos interesses?
Sabemos agora melhor que quase todos os
indicadores progrediram na primeira metade deste período que nos ocupa. E
quase todos os indicadores pioraram na segunda metade. Portugal
aproximou-se dos seus vizinhos e convergiu com a União Europeia na
primeira parte deste tempo. Mas afastou-se e divergiu na segunda parte. O
contraste entre a primeira metade e a segunda é tal que as dificuldades
presentes conduzem muitos a pôr tudo em causa, o euro, o mercado único,
a União e a Comunidade.
Não é ilegítimo tudo querer discutir e
contestar. O debate livre é o que admite todas as hipóteses. Mas também é
o que se faz com algumas certezas. Ora, a Europa é uma delas.
Nem tudo é mensurável no impacto da União em
Portugal. Podemos contar os fundos estruturais e acrescentar as
comparticipações nacionais. Podemos calcular o retorno de muitos destes
investimentos. Como podemos avaliar prejuízos e faltas de rentabilidade.
É igualmente possível contabilizar, aqui e ali, o investimento externo
motivado pela pertença à União. Ou os benefícios e os prejuízos nos
termos de troca e na evolução do comércio externo, seja dentro do
mercado único, seja nos movimentos com terceiros. Muitos outros
benefícios e riscos, vantagens e inconvenientes, podem ser detectados.
Mas há factores de ambiente, questões de cultura, efeitos de proximidade
e consequências de pertença a uma comunidade que dificilmente se
quantificam, mas que são indispensáveis para avaliar globalmente estes
25 anos.
Valores, ideias, costumes e comportamentos
têm inestimável valia para a construção da vida colectiva e para o
estabelecimento de regras de convívio. A democracia, cuja solidez tem
evidentemente relações com o desenvolvimento económico e social, tem
outras origens e outros fundamentos que não são apenas do domínio do
vigor económico. O gosto pela liberdade, a procura da verdade, a
atracção pela ciência e a inclinação para a expressão artística podem
ser mais fáceis ou mais acessíveis com o bem-estar económico, mas a sua
génese está noutro sítio, é de uma outra natureza. A tolerância, o
respeito pelos outros, a solidariedade e a compaixão poderão ser mais
reais quando a escassez e a luta pela sobrevivência estão ultrapassadas,
mas também aqui se trata de valores que não resultam directamente do
desenvolvimento material ou da fortuna.
Todos estes valores, nas suas versões
históricas ou actuais, vêm em grande parte da Europa, aqui nasceram,
aqui se desenvolveram. Apesar dos períodos negros e mau grado a guerra, a
violência e o despotismo que, periodicamente, a Europa alimentou e
exportou para o resto do mundo, a verdade é que foi neste continente que
uma boa parte da civilização contemporânea e da decência humana
encontrou raízes. Foi tudo isto que fomos também buscar à Europa,
continente para o qual tínhamos já tanto contribuído, no passado, mas do
qual nos afastámos durante longas décadas, séculos talvez.
A proximidade cultural e geográfica. A
tradição científica e moral. As implicações religiosas e políticas. A
raiz humanista e tolerante. A democracia e a liberdade: eis razões
suficientes para que o mundo europeu seja o horizonte do nosso futuro.
Mesmo se quisermos olhar e sentir os outros povos e o resto do planeta,
melhor o faremos a partir da Europa. O destino português, como nação,
como Estado ou como parte de uma comunidade mais vasta, exige vizinhos e
parceiros. Sem eles, a solidão é o resultado. Sozinhos, espera-nos uma
fragilidade impensável e talvez uma pobreza inimaginável. Quem sabe se
também não nos esperam a intolerância e o despotismo.
Será possível, com o que sabemos hoje,
imaginar uma nova maneira de estar na União? Evitar os erros das
políticas públicas e corrigir a nossa política diante dos nossos
parceiros? Será possível imaginar uma União refeita e repensada, capaz
de resolver muitos dos problemas que ela própria criou? Podemos conceber
uma União que limite e contrarie as ambições hegemónicas? Podemos
idealizar uma Europa com inteligência suficiente para formular uma
política de coesão? Existe a possibilidade de criação de uma União forte
e menos vulnerável a agressões políticas, culturais e financeiras? A
todas estas perguntas, respondo afirmativamente. Não é seguro, mas é
possível.
Não faço exercício de optimismo. Antes faço
profissão de fé europeia. Não conheço continente, mundo, região, cultura
ou civilização que mais e melhor nos possa dar e para a qual mais
sejamos capazes de contribuir. Como é então possível que, depois de
termos visto, nestes últimos anos, a derrapagem europeia e a
pusilanimidade da União, ainda possa sobrar energia para preferir a
Europa? Pela mesma razão que, depois de conhecermos os erros dos
Portugueses, não desistimos de Portugal.
Apesar de tudo, apesar das pretensões de
hegemonia, mau grado a luta entre as grandes potências europeias, não
obstante a quase ausência de solidariedade entre países membros da
União, apesar de tudo, a Europa!
Apesar do egoísmo e da fragilidade, da desigualdade de Estados e da ambição dos interesses, apesar de tudo, a Europa!
Apetece dizer, pensando num grande europeu do Renascimento, “e, no entanto, a Europa”!
aqui.
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