Gonçalo Ribeiro Telles: Esta entrevista tem 14 anos mas podia ter sido dada hoje
20.06.2017 às 13h14
Nos primeiros 15 dias de agosto de 2003 arderam cerca de 300 mil hectares no nosso País. Passaram 14 anos e continuamos a falar do mesmo. Por isso esta entrevista que, na altura, a VISÃO fez a Gonçalo Ribeiro Telles, não perdeu um pingo de atualidade. Vale a pena voltar a ler as suas palavras e perceber como nada aprendemos com a História, continuando ano após ano na permissividade da celebração do eucaliptal
Nos primeiros 15 dias de agosto de 2003 arderam cerca de 300 mil hectares no nosso País. Os fortes incêndios de Oleiros, Sertã e Aljezur fizeram as manchetes dos jornais (e da VISÃO) e os temas são sempre os mesmos: a floresta de eucaliptos e pinheiros, as falhas da proteção civil, a falta de condições de trabalho dos nossos bombeiros. Passaram 14 anos e continuamos a falar do mesmo. Por isso esta entrevista que, na altura, fizemos a Gonçalo Ribeiro Telles, arquitecto paisagista e “pai” do ecologismo português, não perdeu um pingo de atualidade. Vale a pena voltar a ler as suas palavras e perceber como nada aprendemos com a História, nenhuma lição retiramos dos nossos erros, continuando ano após ano na permissividade da celebração do eucaliptal.
VISÃO: Quais são as causas desta calamidade?
GONÇALO
RIBEIRO TELLES: A grande causa é um mau ordenamento do território, ou
seja, a florestação extensiva com pinheiros e eucaliptos, de madeira
para as celuloses e para a construção civil. O problema foi uma má ideia
para o País, a de que Portugal é um país florestal. Lançou-se a ideia
de que, tirando 12% de solos férteis, tudo o resto só tem possibilidades
económicas em termos de povoamentos florestais industriais.
V: De onde vem essa ideia?
GRT:
É uma ideia antiga que começou nos anos 30 com a destruição, também por
uma floresta extensiva, das comunidades de montanha do Norte de
Portugal, que tinham a sua economia baseada na pecuária. As dificuldades
por que passava a agricultura deram origem a que se quisesse
transformar grandes áreas do País já são 36% em florestas industriais.
Esta campanha transformou a silvicultura, que era a profissão básica,
numa profissão de florestal, para dar resposta aos grandes interesses
económicos. Houve ainda outra campanha, a do trigo, em que se organizou o
País em função desta cultura, que tinha por base o mito da
independência de Portugal em pão. Além das terras para o trigo, tudo o
resto, num sistema de agricultura economicista, tem que ser floresta,
produção de madeira. O resultado está à vista.
V: Passámos então a ser um País florestal.
GRT:
Os romanos dividiam o território em três áreas, além da urbe: o ager,
que era o campo cultivado intensamente; o saltus, a pastagem, a
agricultura menos intensiva; e a silva, a mata de produção de madeira e
de protecção. Todo esse ordenamento foi transformado, acabou-se com a
silvicultura e começou o culto da floresta, que não temos. Se formos ao
campo perguntar onde fica a floresta, eles só conhecem a do Capuchinho
Vermelho, porque o que têm na sua terra são matas, matos, etc. No século
XIX, o pinheiro bravo veio para responder às necessidades do
caminho-de-ferro que estava em lançamento. Mais tarde é que vem a
resina, a indústria da madeira e a celulose. O pior é que se transformou
o País num território despovoado e que, dadas as características
mediterrânicas, arde com as trovoadas secas.
V: Como deve ser reordenado o território?
GRT:
O País está completamente desordenado. Por um lado, uma política
agrícola que não considera o mosaico mediterrânico, com agricultura,
pecuária, regadio e horticultura, os matos, as matas, todo um mosaico
interligado e ordenado. Em Mação, por exemplo, aquela população vivia
tradicionalmente da agricultura que fazia nos vales e nas naves.
E
na serra existiam os matos pastados pelas cabras, pelos bovinos. Dos
matos retirava-se o mel, a aguardente de medronho, a caça e as
aromáticas.
A França, nas zonas de mato, tem uma política de
aromáticas de abastecimento da indústria de perfumes. A questão, hoje, é
criar uma mata que produza madeira, mas que se integre nos
agro-sistemas, uma paisagem sustentada, polivalente e nunca repetir,
como já querem, a plantação de eucaliptos e de pinhal. As populações
estão fartas disso e devem ser chamadas a depor. E tem que haver duas
intenções ecológicas fundamentais: a circulação da água e a circulação
de matéria orgânica, aproveitando-a para melhorar as capacidades de
retenção da água do solo.
V: A excessiva divisão do território (em meio milhão de proprietários) dificulta as limpezas florestais?
GRT:
A limpeza da floresta é um mito. O que se limpa na floresta, a matéria
orgânica? E o que se faz à matéria orgânica, deita-se fora, queima-se?
Dantes era com essa matéria que se ia mantendo a agricultura em boas
condições e melhorando a qualidade dos solos. E, ao mesmo tempo, era
mantida a quantidade suficiente na mata para que houvesse uma maior
capacidade de retenção da água.
Com a limpeza exaustiva
transformámos a mata num espelho e a água corre mais velozmente e menos
se retém na mata, portanto mais seco fica o ambiente.
V: Se as matas estivessem bem limpas ardiam na mesma?
GRT:
Ardiam na mesma e a capacidade de retenção da água não se dava, passava
a haver um sistema torrencial. A limpeza tem que ser entendida como uma
operação agrícola. Mas esta floresta monocultural de resinosas e
eucaliptos, limpa ou não limpa, não serve para mais nada senão para
arder. Aquela floresta vive para não ter gente. Se houvesse lá mais
gente aquilo não ardia assim.
V: Defende uma mata com que tipo de madeiras?
GRT:
Madeiras para celulose é difícil porque temos agora uma forte
concorrência no resto do mundo. Os eucaliptais, para serem mais
rentáveis, só poderiam sê-lo no Minho que é onde chove mais de 800 ml ao
ano. O eucalipto precisa de muita água e Portugal não pode concorrer
com o Brasil e a África em termos de custo. Só se transformarmos o Minho
num eucaliptal. Pode-se optar pelas madeiras de qualidade da cultura
mediterrânica como todos os carvalhos, o sobreiro, a azinheira e pinhais
criteriosamente distribuídos.
V: Não são tão rentáveis...
GRT:
O carvalho, por exemplo, acompanha toda uma panóplia de rendimento como
a cortiça, a pecuária, a produção do mel, das aromáticas, a caça.
V: Há uma visão limitada do que pode ser rentável na floresta?
GRT:
É muito bom para as celuloses e muito mau para as populações e para o
País, que está devastado. O mundo rural foi considerado obsoleto, como
qualquer coisa que vai desaparecer. Veja-se o disparate que foi a
política de diminuição dos activos na agricultura. Contribuiu para o
aumento dos subúrbios, dos bairros de lata, da emigração. Trouxe alguma
coisa melhor para a província? Não. Apenas um grande negócio para as
celuloses e para os madeireiros.
V: As populações estão alertadas para essa multiplicidade de culturas?
GRT:
Completamente alertadas; quem parece que não está são os políticos e os
técnicos. Porque se perderam numa floresta de «números». Quem conhece
as estatísticas diz que somos o terceiro país da Europa em número
absoluto de tractores, só ultrapassados pela Alemanha e pela França.
Somos um país de tracto res porque os subsídios dão para isso, porque
interessa à importação dessa maquinaria toda. As pessoas foram levadas a
investimentos, em nome do progresso, que não tinham qualquer
racionalidade.
V: No caso de se aumentarem as áreas agrícolas, temos agricultores para tratar delas?
GRT:
Temos. Estão desviados, foram convencidos de que eram uns labregos.
Houve toda uma política de desprestígio do mundo rural tendo por base a
ideia de que era inferior ao mundo urbano. Despovoámos os campos e essa
gente toda veio para a cidade. Hoje, enfrenta o desemprego.
Esqueceram-se que o homem do futuro vai ser cada vez mais o homem das
duas culturas, da urbana e da rural. Hoje, 30% das pessoas que praticam a
agricultura económica na Europa não são agricultores. É gente que vive
na cidade, tem lá o seu escritório e tem uma herdade no campo onde vai
aos fins-de-semana. A expansão urbana aumenta e não podemos viver sem a
agricultura senão morremos à fome.
V: Que pode fazer o Estado, uma vez que 84% da nossa floresta está nas mãos dos proprietários?
GRT:
Pode fazer planos integrados de ordenamento da paisagem. O Estado não
domina totalmente a expansão urbana quando quer, não faz planos gerais
de urbanização? Não se devia poder plantar o que se quer porque também
não se pode construir o que se quer. Constrói-se mal porque, às vezes, o
Estado adormece. Faltam planos gerais de ordenamento de paisagem, que a
actual legislação não contempla, apesar de já ter instituído a
Estrutura Ecológica Municipal através do Decreto-Lei 380/99. A Lei de
Bases do Ambiente tem os conceitos e os princípios para um plano de
ordenamento de paisagem, está lá tudo escrito, mas nunca foram
regulamentados.
V: A actual legislação favorece as monoculturas?
GRT:
Favorece porque a chamada «modernização» da agricultura é um escândalo
de incompetência. As universidades de Agronomia em Portugal tiveram um
período de grande pujança intelectual no fim do século XIX e no
princípio do século XX. Agora, parece terem-se rendido ao economicismo.
V: Deve o Estado apoiar com subsídios e benefícios fiscais?
GRT:
Com certeza. O proprietário está com a corda na garganta, faz aquilo
que lhe der dinheiro já para o ano. Por isso, têm que se estabelecer
limites e normas a sistemas, não a culturas, mas sem tirar às pessoas a
liberdade de correr riscos.
V: E promover o associativismo florestal, como em Espanha, por exemplo?
GRT:
Abrimos um bom caminho com as «comunidades urbanas» que estão na forja,
pequenas áreas metropolitanas de freguesias e aldeias, acho muito bem.
Estamos numa cultura mediterrânica e não se pode traduzir o
desenvolvimento em unidades economicistas de produção em grande volume
de dois ou três produtos. É da polivalência, da multiplicidade de
produtos e da harmonia da paisagem que resulta a possibilidade de ter
uma população instalada em condições de dignidade.
Essas
comunidades é que deverão fazer a síntese de todos os interesses. Porque
quando começamos a destacar os interesses por sector, a visão sistémica
desaparece e os interesses da comunidade passam para empresas que
ultrapassam as suas fronteiras comprometendo a sustentabilidade da
região.
Não defendo que haja um sector agrícola e um sector
florestal, para mim é exactamente o mesmo: a agricultura completa a
floresta e a floresta completa a agricultura.
V: O Partido Socialista voltou a falar da regionalização como forma mais eficaz de ordenar o território. Concorda?
GRT:
Defendi uma regionalização há muito tempo, que deu origem a um
documento de que os grandes partidos fizeram muita troça. Dividia o País
em cerca de 30 regiões naturais, áreas de paisagem ordenada, que
estavam já organizadas histórica e geograficamente.
São as terras de
Basto, as terras de Santa Maria, as terras de Sousa, a Bord'água do
Tejo, etc. O País é isso e não é outra coisa. Esta regionalização podia
contribuir para a efectivação dos planos de ordenação da paisagem, com
uma participação democrática das respectivas populações.
V: O Governo acordou tarde para a calamidade dos incêndios?
GRT:
Que podia o Governo fazer? O mal vem de longe. Mas não estou seguro de
que se vá enveredar agora pelo caminho certo. Já estão a dizer que
querem reflorestar tudo como estava. Fico horrorizado quando ouço isso.
Significa que querem voltar aos pinheiros e aos eucaliptos. Perguntem às
vítimas dos incêndios que ficaram sem as casas se querem outra vez
pinheiros à porta. Destruíram as hortas... Porque ardem as casas? Porque
o pinheiro está no quintal.
V: Olhando para o futuro, os incêndios podem constituir uma oportunidade para se reorganizar o território?
GRT:
Também o terramoto permitiu que o Manuel da Maia, a mando do Marquês de
Pombal, fizesse a Baixa lisboeta. Não desejo um terramoto, mas não
percam esta oportunidade. O futuro do País e da sua identidade cultural e
independência está em causa.
(Entrevista publicada na VISÃO 545, de 14 de Agosto de 2003)