"Escritores, jornalistas, professores e alunos reuniram-se na
quarta-feira para debater o Acordo Ortográfico, no fórum "Onde Pára e
Para Onde Vai a Língua Portuguesa?", Faculdade de Ciências Sociais e
Humanas, da Universidade Nova de Lisboa. João Bosco Mota Amaral, Miguel
Sousa Tavares, Nuno Pacheco e Maria Alzira Seixo pronunciaram-se contra o
diploma, na qualidade de “cidadãos da língua portuguesa” - palavras de
Miguel Sousa Tavares.
“Não sou linguista,
gramático nem especialista, sou um simples utilizador da língua, que se
sente assaltado como os cipriotas, que têm dinheiro nos bancos, se
sentem neste momento”, revelou durante a sessão. Definiu como “surreal” a
encruzilhada que se vive neste momento. “Neste momento, há três
dialectos oficiais de português: o que se fala no Brasil, o que se fala
em Moçambique, Angola e outros PALOP, que é o nosso antigo; e há o nosso
acordo, que só nós aplicamos. Sendo que queríamos unificar, ficámos
sozinhos num suposto texto unificador da língua portuguesa”, afirmou.
“Um
dos argumentos iniciais era: ‘a língua tem de ser uma coisa de todos’.
Mas a língua já é uma coisa de todos, uns escrevem melhor, outros pior,
uns são escritores, outros quase analfabetos. A sociedade sempre
conseguiu viver com isto, da mesma forma como consegue viver com as
diferenças que existem entre cada país”, disse Nuno Pacheco,
Vice-Director do PÚBLICO. “Desde a República, que não existe uma
coincidência entre a forma como o Brasil e Portugal escrevem. A própria
estrutura frásica é diferente e não é um acordo ortográfico que vai
resolver isso. Temos de entender que essas diferenças são óptimas”,
continuou.
Partilhando da mesma indignação, o deputado João Bosco
Mota Amaral foi apanhado de surpresa quando o seu computador na
Assembleia da República passou a “assinalar como erro o modo de escrever
aprendido há muitas décadas”.
Sousa Tavares confessou que quando
tomou conhecimento do acordo ortográfico, em 1991, chegou à conclusão,
“não tão irónica quanto isso”, de que a origem deste documento estava
num conjunto de “cabeças pensantes, mas pouco activas, da Academia de
Ciências, que para arranjar financiamento para viagens ao Brasil”, deram
como “pretexto” o acordo ortográfico.
Pelo contrário, Maria
Alzira Seixo aponta uma “origem universitária e não partidária” ao
documento. “Vi nascer este acordo nos corredores da faculdade nos anos
1980, pelas mãos dos meus colegas Fernando Cristóvão e João Malaca
Casteleiro”.
“Vínculo amoroso à palavra”
João
Pedro Serra, professor de estudos clássicos da Faculdade de Letras da
Universidade de Lisboa, não esconde o afecto que o liga à língua materna
e procura transmitir aos seus alunos esse “vínculo amoroso à palavra”.
Condena este acordo que conduz ao “obscurecimento da palavra” e
“transforma numa convenção, aquilo que deveria ser luminoso”.
Para
este teórico e amante da palavra, a luta em que participa, mais do que
colectiva, é pessoal. “Não gosto que me mexam nas contas do banco mas
ainda menos gosto que me mexam naquilo que me tece a alma”.
Jorge
Buescu, matemático, disse que a sua presença no encontro se devia à mãe,
Maria Leonor Buescu, professora universitária e opositora do acordo
desde o início. Tendo recebido como herança essa ligação com a língua
portuguesa, revela que “escrever assim é uma dor de alma”. “Se for
preciso vou dar erros de ortografia pela primeira vez”, continua.
Maria
Alzira Seixo, escritora e professora na Faculdade de Letras, recorre à
metáfora do corpo para explicar a importância da língua. “Há duas coisas
fundamentais para o corpo se exprimir: respirar e comunicar”. “A
ortografia funciona como a pele para o corpo e se esfaquearmos a nossa
pele todo o corpo sofre”. Para a autora, a identidade da língua depende
“do lugar onde se está” e da “herança cultural” de cada país. Daí que
considere que escrever e “falar o português de formas diferentes em
Portugal e no Brasil seja uma coisa perfeitamente natural”. Explica que a
evolução natural de uma língua não é imposta por um “diploma”, é feita
pelos seus utilizadores. “Somos nós a falar que modificamos certas
formas de expressão e as consagramos através do uso”.
Estratégias de luta
José
Luís Porfírio, crítico de arte, revelou a estratégia que utiliza para
contornar as normas do acordo ortográfico, aplicadas no semanário Expresso,
onde escreve desde 1980. Perante a “traição do jornal”, decidiu fazer
“uma coisa à portuguesa”, escrever “sem usar as palavras novas”.
Exemplificou contando que num texto que escreveu esta semana, sobre o
arquitecto João de Almeida, substituiu “arquitecto” por “desenhador de
casas”. Deixou, no fim da sua intervenção, uma mensagem: “O crítico é um
‘espetador’ com espeto afiado, que vai buscar ao seu estoque a matéria
para a espetada final. E o que eu desejo a todos é que a espetada final
não seja na língua portuguesa, seja no acordo”.
Pedro Afonso,
estudante do Instituto Superior Técnico, representou, perante uma
plateia repleta de jovens, o movimento estudantil “Desacordo Técnico”,
com o qual procura “consciencializar os colegas de que os objectivos do
acordo não passam de um canto de sereia, que nunca será concretizado”.
Enquanto estudante de engenharia, “habituado a comprovar os teoremas com
provas empíricas” deduz, a partir da sua experiência, que o acordo
ortográfico é “um objectivo quimérico e impossível” de aplicar.
Nas
escolas do ensino secundário, a situação é de “caos linguístico”,
revelou Ana Silva, professora na Escola Secundária da Amadora. “Os
alunos deparam-se com modelos opostos, em termos de escrita, desde a
comunicação social aos manuais que utilizam. Neste momento, perderam a
noção do erro”, explicou ao PÚBLICO a professora, que veio acompanhada
de quatro alunos.
No final do debate, Maria Filomena Molder, uma
das organizadoras do evento, fez o balanço daquela que considerou ser
“uma sessão de esclarecimento constante” e elogiou a “capacidade de
resistência” dos oradores perante a “estupidez instalada e a ignorância
que neste momento grassa no nosso país”."
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