quinta-feira, 17 de maio de 2012

educação... reflexões... de desidério murcho...!

"Talvez seja algo exagerado afirmar que o ensino se prostituiu quando se estatizou, mas não será um exagero assim tão grande. A estatização do ensino ocorre quando o estado dá à escola o poder de conferir estatutos reconhecidos pelo estado — diplomas que dão acesso a empregos. Na Grécia da antiguidade isso não acontecia: as diversas escolas de filosofia gregas — a academia e o liceu, o jardim de Epicuro e o pórtico dos estoicos, entre outras — não tinham, felizmente para eles, qualquer reconhecimento do estado, e não desempenhavam qualquer função em nome do estado. Os sofistas, cujo nome ganhou depois má reputação, sobretudo às mãos de Platão, eram professores itinerantes que respondiam às necessidades de ensino dos jovens gregos, que queriam ficar aptos a dominar diferentes assuntos por diferentes motivos — um dos quais, a persuasão a todo o custo, importante naquele tempo, como hoje em dia, para uma carreira política. Não sabemos em pormenor como se processava o ensino nas escolas de filosofia gregas da antiguidade, ou com os sofistas, mas não será uma especulação descabida pensar que se os alunos eram aí avaliados, a sua avaliação tinha uma relação direta com a natureza do próprio estudo desenvolvido, e não com quaisquer ditames estatais, relacionados com diplomas.

O ensino dá os primeiros passos no sentido da estatização com a fundação das escolas medievais que deram origem às universidades: as
studia generalia. Estas eram já uma resposta às necessidades de educar monges e clérigos para lá do ensino elementar que recebiam nas escolas monásticas e nas catedrais. Quando a primeira instituição semelhante a uma universidade moderna é fundada em Salerno, na Itália, no séc. IX, aproximamo-nos ainda mais da estatização do ensino, pois tratava-se exclusivamente de uma escola de medicina, cuja profissão será mais tarde fortemente regulamentada pelo estado. A fundação da primeira universidade europeia propriamente dita, dedicada a várias áreas, ocorreu em Bolonha, no séc. XI. As universidades de Paris e Oxford, fundadas no séc. XII, apesar de continuarem a infeliz caminhada no sentido da estatização, eram ainda fundamentalmente instituições independentes: uma espécie de cooperativas de professores e estudantes, que tinham a liberdade de fazer o que julgavam adequado, sem dar satisfações ao estado. Já a Universidade de Nápoles, assim como a de Toulouse, ambas fundadas no séc. XIII, tornam explícito o problema que hoje vivemos: a primeira foi fundada pelo imperador Frederico Segundo, respondendo por isso à autoridade imperial, e a segunda foi fundada por decreto papal. A apropriação das universidades e do ensino por parte do poder político e eclesiástico inaugura uma parte importante dos problemas e confusões que hoje vivemos; e ainda que seja certamente um exagero afirmar que nada de bom daí adveio, não estaremos longe da verdade se afirmarmos que grande parte dos males que hoje vivemos no ensino resultaram desta apropriação.

A estatização do ensino teve o efeito devastador de normalizar todos os aspectos do ensino, incluindo os métodos, as bibliografias, os desenhos curriculares e as avaliações. Como seria de esperar, a normalização do ensino dificulta a inovação e tende a produzir professores iguais aos professores anteriores, que por sua vez formam professores iguais a si mesmos. A inovação genuína e a saudável experimentação é hoje quase impossível no ensino e basta pensar como seria hoje a tecnologia dos computadores, por exemplo, caso esta fosse inteiramente normalizada e centralizada pelo estado, para se ter uma ideia de como poderíamos ter inovado em educação se o estado centralizador não nos castrasse.


Como se isso não bastasse, a estatização do ensino teve ainda o efeito de obrigar as pessoas a estudar o que não querem e de não lhes permitir estudar o que querem. Os jovens são obrigados a estudar nas escolas e universidades, mas a uniformização não lhes permite escolher o que realmente querem. Os estudantes são obrigados a estudar o que não lhes interessa e nunca lhes interessará, acabando por ter um profundo desprezo pelo próprio ensino no seu todo. São horas infindáveis de tédio e sacrifício por parte deles, e recursos financeiros desperdiçados, quase sempre públicos. Consideramos hoje normal que um punhado de pessoas que detêm o poder político, e ainda que não tenham qualquer concepção minimamente articulada, e ainda menos defensável, do que deve ser uma escola ou uma universidade, tenham o direito de decidir quem estuda o quê e como e onde, dando origem ao imenso desperdício e tédio infindável do ensino actual, quando a simples liberdade grega original de cada qual fazer a sua escola e cursar o que bem quiser daria uma resposta muito mais eficaz às necessidades educativas dos jovens. Talvez no futuro as pessoas olhem para o ensino que temos hoje e fiquem perplexas com a nossa confiança cega na estatização e centralização, mesmo depois de termos aprendido pela experiência que ambas geram ineficiências, desperdício, normalização e ausência de inovação em quase todas as áreas.


É neste contexto mais vasto que temos de inserir alguns debates atuais sobre o que queremos que seja a universidade ou a escola. Quando Wolff 1969 ironiza, tendo em mente as universidades norte-americanas, que estas

“foram fundadas por todo o tipo de razões: para preservar uma fé ancestral, para fazer prosélitos de uma nova fé, para formar trabalhadores especializados, para elevar os padrões de diferentes profissões, para expandir as fronteiras do conhecimento e até para educar os jovens” (p. 1),
está propositadamente a deixar para o fim aquilo que numa primeira análise poderia parecer que seria a razão de ser das universidades: a educação dos jovens. Wolff apresenta então, com a mesma ironia que o caracteriza, quatro concepções de universidade:
  1. Santuário de erudição, para investigar e ensinar a investigar aqueles aspectos da realidade profundamente desinteressantes para a maior parte da população, e até irritantes, como a matemática pura, a biologia molecular ou a metafísica da modalidade;
  2. Escola profissional, para dar formação aos futuros profissionais das mais diversas áreas, da farmácia à hotelaria, passando pelo turismo e pela computação;
  3. Serviço social, para mudar a sociedade, tornando-a mais igualitária, destruindo elites ou pelo menos permitindo que mais e mais pessoas pertençam às elites (duas concepções diferentes do projeto igualitarista que nem sempre se vê que são incompatíveis);
  4. Linha de montagem de cidadãos, para que as pessoas fiquem todas iguais e a pensar o mesmo, participando cada vez mais no que não querem de modo algum participar: a vida pública.

Mal se apresenta estas diferentes concepções de universidade, gera-se um debate sobre qual delas deve ser dominante. Este debate, contudo, só faz sentido no contexto de centralização e estatização do ensino em que vivemos; caso este não existisse, como na Grécia da antiguidade, diferentes instituições poderiam responder a diferentes necessidades dos estudantes e refletir diferentes interesses de professores e investigadores. Não haveria qualquer debate, do mesmo modo que não há qualquer debate sobre se os sapatos devem ser todos pretos ou castanhos ou azuis, com sola de borracha ou lona ou cabedal: tal debate não existe porque cada qual faz os sapatos como lhe apetecer e cada qual compra os que prefere. Do mesmo modo, não fosse a estatização e centralização do ensino, diferentes estudantes e diferentes professores poderiam escolher diferentes tipos de ensino, segundo as suas preferências
."


Referência


Wolff, R. P. 1969. The Ideal of the University. New Brunswick, NJ: Transaction Publishers, 1999, 2.a ed.

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