"O Ministério da Educação e Ciência (MEC) conseguiu surpreender os professores com o modelo da prova de avaliação de conhecimentos e capacidades, obrigatória para todos os docentes sem vínculo à função pública que pretendam candidatar-se a dar aulas no próximo ano lectivo. Depois da publicação do modelo do teste – com exemplos das questões que serão colocadas –, as opiniões dividem-se. Alguns acham-na “básica”, “ridícula”, “elementar”, “insultuosa” e “apatetada”, outros acham que até poderá afastar pessoas da carreira docente, por ser “desadequada”, “absurda” e igualmente “ridícula”. Mas há quem alerte: em situação de stress, conseguirá um professor responder bem?
Nos últimos segundos desta quinta-feira – ou seja, mesmo no limite do prazo que o MEC concedeu a si próprio –, surgiu na página do Instituto de Avaliação Educativa (IAVE) o guia da prova e, como anexo, o modelo da componente comum do teste, marcada para 18 de Dezembro. Pela primeira vez, mais de 45 mil professores souberam o que é que o MEC pretende que eles saibam para continuar a dar aulas. Isto no que respeita às competências “transversais”, já que as provas específicas (consoante as áreas disciplinares dos docentes) só se realizam entre Março e Abril de 2014.
Nesta primeira fase, 80% da cotação vai para as perguntas de escolha múltipla. Um exemplo: a partir de uma sequência de letras, como A B A C C D C E E, os professores terão de escolher, de entre quatro hipóteses, as quatro letras que permitem continuá-la: hipótese A (F E G G), B (F E H H ), C (F F G F) ou D ( F F G H)? Outro exemplo: tendo em conta um diagrama que mostra os nomes dos alunos de uma turma de acordo com os clubes em que estão inscritos (Aventura, Desporto, Leitura e Teatro), os professores são convidados a acertar na resposta correcta, em quatro possíveis, às questões: “qual dos alunos seguintes está inscrito apenas em três clubes?” e “qual dos alunos seguintes está inscrito nos clubes de Leitura e de Teatro, mas não no clube de Desporto?”.
No único item de “resposta extensa orientada” (que valerá 20% da cotação total) os avaliados terão de produzir um texto com um número de palavras compreendido entre 250 e 350, inclusive. Para que se tenha uma ideia do que pode ser pedido, o IAVE fez publicar um excerto de Um Fio de Nada, Ensaio sobre a Tolerância, de Diogo Pires Aurélio. Neste caso, pede-se aos professores que escrevam um texto em que exponham a sua opinião sobre as eventuais implicações das duas concepções de tolerância apresentadas, transpondo-as para um contexto escolar.
O PÚBLICO falou com dirigentes de associações de professores, todos contra a prova, a quem pediu que vissem o exemplo e fizessem, a título individual, um primeiro comentário. Alguns já tinham consultado a página do Iave. Foi o caso de Lurdes Figueiral, da Associação de Professores de Matemática, que disse ter dificuldades em expressar a sua indignação “sem ser ofensiva”: “É que a prova é tão elementar, tão básica, que é um bocado… nem sei… gozar com a nossa cara. Insultuosa.” A sua experiência diz-lhe que se apresentasse aquelas questões a alunos do secundário “eles riam-se”. Pensa que a prova resulta “da teoria absurda do ministro da Educação”, Nuno Crato, “de que é preciso arranjar exames para tudo e para todos”. O que, depois de conhecer o modelo, diz, considera “ainda mais grave e pouco ético, por estar a delapidar o erário público, nas actuais circunstâncias, para nada”.
José Alberto Rodrigues, dirigente da Associação de Professores de Educação Visual e Tecnológica, foi outro dos que já tinham espreitado a prova. E diz que, quando o fez, riu-se, “para não chorar”. Na sua perspectiva, as questões são “absolutamente básicas e elementares”. Comenta mesmo que, “naturalmente, as capacidades que estão implícitas nos exemplos de questões já foram imensamente provadas pelos professores, muitos dos quais têm, para além de vários anos de serviço, mestrados e doutoramentos”. Conclui que a prova é “uma afronta” e sublinha que a grande questão que o modelo levanta é: “Afinal, o que é que o ministro pretende?”
“Afastar professores, esse é o objectivo de Nuno Crato”, diz Alberto Gaspar, que preside à Associação de Professores de Inglês. Não porque ache a prova difícil, “pelo contrário”, diz. “As questões são básicas e acessíveis a qualquer adulto instruído, algumas caricatas, mesmo”, comentou. A questão é que, na sua opinião, para além de “não servir para avaliar seja o que for”, a prova poderá ser “um obstáculo” para quem “tem uma inteligência menos visual e se pode baralhar na leitura de um diagrama, por exemplo”; ou para quem “tenha dificuldades com a pontuação ou com a translineação”. “É por aqui que se vê se um professor é bom ou não, se ensina bem ou mal? Afastar professores da carreira com questões destas é inacreditável”, comentou Alberto Gaspar, depois de frisar que ainda tem esperança de que as acções em tribunal e a manifestação dos professores e da opinião pública façam o ministro recuar na aplicação da prova.
Conseguirá responder em stress?
Para Cristina Loureiro, presidente da Escola Superior de Educação de Lisboa (ESEL), uma prova desta natureza "é apenas uma maneira de eliminar aqueles que em situação de maior stress vão falhar. Quem é que é capaz de garantir que em situação de grande pressão, com o emprego em risco nos dias de hoje, não erra, mesmo no que domina?". A responsável teme que venham a ser eliminados "excelentes professores que há anos garantem acções de excelência nas escolas públicas".
A facilidade da prova pode levar a que todos a ultrapassem e, se assim for, "para quê toda esta máquina montada", pergunta. Cristina Loureiro mostra-se preocupada com um processo de selecção que possa excluir os melhores.
Para Ramiro Marques, professor da Escola Superior de Educação de Santarém e autor do blogue ProfBlog, esta é uma prova que tem como objectivo avaliar o raciocínio lógico-matemático e o domínio da língua portuguesa e "está correcta". "Não significa que não devesse avaliar outras coisas, mas não me repugna." O professor lembra que há professores que ensinam Matemática e que não tiveram aproveitamento à disciplina no 9.º ano, logo, "alguma coisa tem de ser feita".
A dirigente da Associação de Professores de Geografia, Telma Canavilhas, ficou preocupada. Pediu tempo para ver o modelo e depois comentou: “Ab-sur-do. Não tenho outra palavra: absurdo!” Diz que, por mais voltas que desse, não conseguiu compreender o que pretende Nuno Crato e considera que não se pode dizer que “as questões são fáceis ou difíceis”. “A prova é completamente desadequada e coloca os professores em circunstâncias desiguais consoante a sua formação de base”, criticou. Pensa que “o tipo de questões são as habitualmente colocadas nos testes psicotécnicos e que é possível aos professores treinarem, para se familiarizarem com elas”. “O MEC é o maior inimigo do MEC: interessa a alguém que, em vez de se preocuparem com os seus alunos, os professores comecem hoje a treinar para aquilo?”, pergunta.
Aquela é também a posição do presidente da Associação Nacional dos Professores Contratados (ANVPC), César Israel Paulo. Diz que é uma prova que consta de “rasteiras”, "baseada numa lógica matemática que não é dominada por excelentes professores”, que se “podem enganar por não estarem familiarizados com ela”. Também teme que a obrigatoriedade de respeitar o novo acordo ortográfico resulte em zeros na composição.
Desviar as atenções
“Um conselho: na composição não usem palavras difíceis, nada que levante dúvidas em relação à forma como se escreve segundo o acordo”, oferece Paulo Guinote, autor do blogue Educação do Meu Umbigo e professor de História. Diz que aquele é o único problema que a prova, “completamente apatetada”, pode colocar aos docentes. Sobre o exemplo da composição, garante que já pediu "coisas mais difíceis aos alunos do 9.º ano". Em relação a algumas questões de escolha múltipla afirma que está em causa “um nível de literacia funcional exigível a crianças do 6.º ano”. Quanto ao que quer o ministro, não tem dúvidas: “Desviar as atenções da opinião pública do que é importante. Nomeadamente, tentar que as pessoas se esqueçam de que os professores recusam a prova por uma questão de princípio e não porque ela é fácil ou difícil”, considera.
Ramiro Marques concorda que há perguntas a nível do 6.º ano, mas que existe um equilíbrio com as mais difíceis. "Estou convencido de que não vai haver resultados péssimos e a maioria vai ter resultados razoáveis."
Cristina Loureiro considera que a tutela "criou toda esta situação para dar a ideia à opinião pública de que está a procurar os melhores professores e educadores". Mas não é o caso. "Esta prova confirma que o MEC decidiu usar um processo de excluir pessoas do sistema. É uma forma de exclusão cega. É uma forma de exclusão que não encara os professores e educadores como pessoas." A presidente da ESEL vai mais longe: o ministério "está a confirmar o que já ninguém duvida e que é destruir a escola pública. Pois quem preza a escola pública quer os melhores professores e educadores e não é este tipo de crivo que permite identificá-los".
O ex-secretário de Estado da Educação Joaquim Azevedo considera necessária a existência de uma prova, mas que seja feita à entrada da profissão. "É importante o MEC negociar com os sindicatos mecanismos para que aceda à profissão de professor um tipo de jovens o mais qualificado possível, para credibilizar a profissão", defende Joaquim Azevedo.
Também Cristina Loureiro, Ramiro Marques e Glória Ramalho, ex-directora do Gave, são da mesma opinião: uma prova à entrada. "É constrangedor obrigar um professor com dez ou 12 anos de serviço a submeter-se a esta prova", defende o professor de Santarém.
Glória Ramalho, como especialista em avaliação, recusa-se a analisar esta prova e a discutir o seu formato por uma razão muito simples: "Não concordo com as condições. É uma aposta infeliz e errada quando o universo de aplicação é quem está há anos no sistema."
Ramiro Marques condena os que criticam a prova. "Alguma coisa tem de ser feita" e, uma vez que os professores não admitem que outros entrem na sala de aula para os avaliar, a prova terá de ser escrita, argumenta. "Agora que têm uma prova que mede o que é possível medir, dizem que não mede o essencial que é o que se passa na sala de aula", critica. O "fundamental" é a abertura da sala de aula porque "um mau professor provoca estragos enormes na vida de milhares de alunos" e isso tem de mudar, conclui."
Sem comentários:
Enviar um comentário