quarta-feira, 26 de dezembro de 2018

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Uma mulher não chora, terá pensado Oriana nesse final de tarde de outubro? Aquela não era a primeira vez em que se via numa situação difícil. Os tiros do Batalhão Olímpia, o grupo paramilitar que disparava sobre os estudantes na Praça das Três Culturas de Tlatelolco, no centro histórico da Cidade do México, eram bem reais mas, que diabo!, há um ano que ela sabia no terreno o que era uma guerra. Já estivera várias vezes no Vietname, sempre com a mesma mochila onde escrevera que o seu corpo deveria ser entregue ao embaixador de Itália em caso de KIA (killed in action, morta em combate).

“Uma rapariga não chora, não deve chorar”, dissera-lhe o pai depois de lhe pregar uma chapada, tinha ela 14 anos e pela primeira vez tremia de medo durante um bombardeamento dos Aliados na II Guerra Mundial, em Florença. “Chorava de uma forma silenciosa, composta, sem gemidos, sem soluços, mas ele deu por isso”, conta no livro A Raiva e o Orgulho, o seu último, escrito no rescaldo do 11 de Setembro. Nunca mais voltara a derramar lágrimas em público; não iria fazê-lo agora, embora tivesse a sensação de estar frente a um pelotão de fuzilamento.

“Na guerra, às vezes há uma hipótese, mas ali não havia nenhuma”, recorda a jornalista num outro livro, Nada e Assim Seja, que escreveu sobre a guerra do Vietname. “[Em Tlatelolco], encostaram-nos a uma parede, não podíamos mexer-nos; mais tarde aparecia-me com frequência o pesadelo de um escorpião rodeado de chamas.”

Oriana viajara para a Cidade do México especificamente para cobrir os protestos dos estudantes universitários. Naquela tarde de 2 de outubro de 1968, em vésperas dos Jogos Olímpicos, refugiara-se com um grupo de jovens manifestantes no edifício Chihuahua, de imediato rodeado pelos paramilitares, o exército e a polícia. Um deles, Manuel Gómez Muñoz, então representante do Conservatório Nacional no Conselho Nacional de Greve, que falava italiano porque estudava canto lírico, viu-a ser alvejada duas vezes no momento em que os obrigaram a trocar de sala. “A primeira coisa que me perguntou foi se tinha sido nos rins, se tivesse sido estaria acabada.”

Não tinha. A jornalista ainda seria arrastada sem piedade e roubada de todos os seus pertences, antes de ser levada para o hospital. Alguém romancearia que chegou a ser dada como morta e deixada numa morgue improvisada – não é verdade. Certo é que nunca mais voltou ao México depois desta trágica tarde que ficou conhecida como o Massacre de Tlatelolco, mas mais por ter ficado com azar ao país, diria, do que por medo.

Bonita, petite, de olhos azuis-acinzentados enfatizados pelo eyeliner, Oriana Fallaci era menos frágil do que aparentava. A voz rouca dos cigarros e o sotaque sexy ajudavam a construir essa primeira impressão que se desvanecia ao desafiar – destemida – os todo-poderosos, uma e outra vez apanhados de surpresa. As suas entrevistas a políticos e governantes eram campos de batalha, com os entrevistados a acabarem invariavelmente numa imaginária coleção de peles. Para ela, o poder era desumano, um fenómeno detestável, e por isso tudo fazia para o desmascarar.




Uma espécie de bruxa

O rol de duas décadas de entrevistas e o seu método perturbador impressionam. Ao coronel Muammar Kadhafi, perguntou, sem rodeios: “Sabe que é pouco amado?” Com Lech Walesa começou cheia de ironia: “Já alguém lhe disse que é parecido com Estaline? Fisicamente, quero dizer.” Importunou Ariel Sharon com o significado da palavra “terrorista”, acusando-o de ele próprio ter sido um. E, finalmente, frente a Makarios III, então Presidente do Chipre e patriarca da Igreja Ortodoxa Grega, quis logo saber se ele era um apaixonado por mulheres (sendo que o seu silêncio acabou a comprometê-lo).

Escreva-se ainda que Henry Kissinger repetiu inúmeras vezes ter tido com ela a conversa “mais desastrosa” da sua vida (as suas relações com Nixon esfriariam em consequência dela), mas que foi a entrevista ao ayatollah Khomeini a fazer dela uma lenda, já se vai ver porquê.

Antes de qualquer entrevista, preparava-se obsessivamente porque as via como “um exame mútuo, um teste aos nervos”, lê-se na biografia Oriana Fallaci: The Journalist, the Agitator, the Legend, de Cristina De Stefano. “Nas minhas entrevistas, não ajo apenas com as minhas opiniões [era uma mulher de esquerda], mas também com as minhas emoções; todas as minhas entrevistas são dramas”, explicaria. “Ouço realmente as pessoas e tenho instinto, sou uma espécie de bruxa.”

Quanto às perguntas, quase sempre usadas para provocar o seu interlocutor, justificava-se assim: “São brutais porque a procura da verdade é uma espécie de cirurgia, e a cirurgia dói. A maioria dos meus colegas não tem a coragem de colocar as perguntas certas.” Ser jornalista, na sua opinião, era sinónimo de “ser desobediente, estar na oposição”.

“La Fallaci”, como era chamada por muitos, era uma mulher corajosa e a genética poderá explicar em parte essa sua característica. O pai, Edoardo Fallaci, um marceneiro antifascista, seria preso e torturado em 1944, por causa de um depósito de armas recebidas dos americanos. A mãe, Tosca Cantini, órfã de um anarquista, havia de o encontrar ao fim de dois dias, na Villa Triste, conhecida como “a casa da tortura”, enfrentando o sinistro major Carità para o tirar de lá vivo. “Senhora, não tenho tempo para perder. O seu marido será executado amanhã de manhã, às seis. Pode vestir-se de preto”, aconselhou o “Sr. Caridade”.

“A minha mãe levantou-se e disse-lhe: ‘Mario Carità, amanhã de manhã vou vestir-me de preto, como disse, mas se o senhor nasceu do ventre de uma mulher, diga à sua mãe para fazer o mesmo porque o seu dia vai chegar muito em breve’”, contou Oriana à jornalista americana Margaret Talbot, a quem deu a sua última entrevista para a New Yorker, cinco meses antes de morrer, a 15 de setembro de 2006.

Edoardo seria poupado, passando mais um tempo na cadeia. A mãe de Oriana abortaria naquele mesmo dia, à saída da Villa Triste. “Chegou a nossa casa, branca como a neve, e disse:‘O pai vai ser executado amanhã e a Elena (o nome que já tinha dado à futura criança) morreu’. Sem lágrimas.”

Antes deste episódio, já a mais velha das quatro manas Fallaci percorria de bicicleta a cidade e os campos vizinhos, desempenhando tarefas clandestinas para a resistência antifascista. Tinha 14 anos, respondia pelo nome de guerra “Emilia” e usava umas trancinhas que lhe davam um ar inocente; ninguém desconfiaria que levava granadas de mão escondidas em alfaces no cesto da sua bicicleta.

Leitora ávida, aliás como a sua mãe, tinha a sorte de dormir no “quarto dos livros”. Uma noite reparou numa senhora que a olhava da capa de um calhamaço, mesmo por cima do seu divã minúsculo, e pegou-lhe, curiosa. Tosca ainda lhe disse “Que vergonha, isso não é coisa para crianças”, mas acabou a incentivá-la: “Lê, lê, está tudo bem.” Eram As Mil e Uma Noites que se tornaram os seus contos de fadas, abrindo caminho pouco depois para as Aventuras de Jack London.

Ótima estudante, aos 17 anos já colaborava com o jornal Il Mattino dell’Italia Centrale, seguindo os passos do seu tio Bruno. Com o primeiro salário pôde inscrever-se na Faculdade de Medicina, mas rapidamente teve de largar os estudos, difíceis de conciliar com a escrita, madrugada dentro, de artigos sobre crimes e desgraças em geral.

Começava pela “cronaca nera” (notícias de crime), o que explica a sua urgência de chegar antes dos outros às notícias, confessou mais tarde. Seguir-se-iam as crónicas de tribunal e só depois entrou pelos temas do dia a dia, que lhe abriram caminho para o mundo da moda e do espetáculo. Mas, antes ainda, um artigo sobre o enterro de um comunista que a Igreja se recusou a fazer chamou a atenção dos editores do L’Europeo.

“Estúpido trapo medieval”

Foi a trabalhar para esse semanário que, no início dos anos 50, se mudou para Roma, onde a dolce vita atingira o seu esplendor, a Cinecittà fervilhava e quase todas as estrelas de cinema estavam ali à mão para serem entrevistadas. Quem diria que seria a fazer perguntas a Gina Lollobrigida que Oriana iria iniciar a sua carreira de grande entrevistadora? “Não acho que você seja tão estúpida como as pessoas dizem” – assim apanhou a atriz de surpresa.

O falso pudor não era com ela, percebeu-se imediatamente. E a técnica para levar as suas “vítimas” a revelarem aquilo que gostariam de esconder, sobretudo o lado obscuro das suas mentes, logo aplicada. Os rascunhos das dezenas de entrevistas que fez ao longo das mais de duas décadas quase só dedicadas a esta arte evidenciam que nada era deixado ao acaso – as suas afirmações, muitas vezes transvestidas de perguntas, tinham como objetivo levar os seus entrevistados a irem baixando a guarda até à estocada final.

Chamada a Milão, onde ficava a sede do jornal, Oriana desatou rapidamente a correr o mundo. Em Los Angeles, teve mais umas conversas memoráveis que compilou no seu primeiro livro, I Sette Peccati di Hollywood. Depois começou a entrevistar os “donos disto tudo”, aceitando também ser enviada especial e repórter de guerra, e publicando livro atrás de livro. No final dos anos 70, investiu finalmente na ficção (o fim que sempre tinha querido alcançar através do jornalismo), com êxito.

Será, porém, pelas suas entrevistas que ficará para a História – e não apenas a do jornalismo. Entrevistas de antologia como aquela que fez a ayatollah Khomeini, um político a sério “e não um fantoche como eram Arafat ou Kadhafi”, dirá, mas que ela havia de culpar pelo fanatismo islâmico no mundo. “Uma pena que a sua mãe, quando estava grávida, não tenha escolhido abortar”, comentou na referida entrevista a Talbot.

O encontro dos dois merece ser recordado em detalhe, até ao momento em que o imã abriu um sorriso e por fim não conseguiu conter uma gargalhada. Estávamos em setembro de 1979, logo após o eclodir da revolução iraniana, quando Oriana viajou até à cidade santa de Qom para entrevistar o homem que declarara o Irão um estado islâmico. Ao fim de dez dias de espera e de muita insistência, chegou finalmente o “sim” do imã, com uma condição: ela teria de se apresentar descalça e envolvida num chador semelhante àquele que todas as mulheres iranianas eram obrigadas a usar fora de casa.

Oriana começaria a entrevista logo ao ataque, como era seu hábito. Uma após outra, disparou perguntas sobre o encerramento de jornais da oposição, o tratamento dado à minoria curda iraniana e as execuções sumárias levadas a cabo pelo novo regime, na verdade acusações a que o Khomeini ia respondendo com metáforas e evasivas. Até que dirigiu a sua indignação para os cada vez mais diminutos direitos das mulheres, afinal também elas obreiras do novíssimo estado islâmico. Por exemplo, por que razão tinham as iranianas agora de andar “escondidas como feijões debaixo de uma roupa tão incómoda e absurda” como era o chador, que nem as deixava moverem-se livremente quanto mais trabalhar?
Aqui, Khomeini pôs as unhas de fora, virando-as diretamente para a italiana: essas mulheres que tinham andado a lutar ao lado dos homens, contribuindo para a revolução, usavam todas “vestuário islâmico”, não eram como Fallaci que andava “de cabeça descoberta por aí, arrastando atrás de si um comboio de homens”; dessa maneira não teriam sido úteis porque haveriam de “perturbar até as outras mulheres”.

Quase 40 anos depois, imaginamo-la a ranger os dentes antes de dizer a frase “Não é verdade, imã”, ganhando assim tempo para puxar atrás a culatra e descarregar com a segregação a que eram votadas as iranianas desde a revolução: “Não podem estudar na universidade com os homens, nem trabalhar com os homens, nem tomar banho no mar ou na piscina com os homens. Devem mergulhar à parte com o chador. A propósito”, perguntou, irónica, “como se faz para nadar com o chador?”

Faça-se aqui um parêntesis para lamentar a inexistência de uma filmagem desta entrevista, se não fosse pedir muito, realizada com duas câmaras que captassem a tensão, os olhares, a linguagem corporal de ambos. Só as perguntas e respostas (que podemos ler em italiano no site oriana-fallaci.com e em português no livro Entrevista Com a História) nos deixam rever a rapidez com que Khomeini presumiu erradamente que a calaria, ao responder: “Nada disto lhe diz respeito. Os nossos costumes não lhe dizem respeito. Se o vestuário islâmico lhe desagrada, não é obrigada a usá-lo. Porque ele é para as mulheres jovens e respeitáveis.” Oriana não perdeu tempo a mostrar-se ofendida. Viu ali uma oportunidade para se afirmar e não hesitou. “Muito gentil”, escarneceu. “E, visto que me diz isso, tiro já este estúpido trapo medieval”, avisou, arrancando o chador.

Nesse momento – contaria a Talbot –, Khomeini mostrou-se ofendido. “Levantou-se como um gato, ágil como um gato, uma agilidade que nunca esperaria num homem tão velho como ele era, e deixou-me. Tive de esperar 24 horas (ou 48?) para o ver de novo e terminar a entrevista.”

Dessa segunda vez, um dos filhos de Khomeini, Ahmed, aconselhou-a a nem sequer usar a palavra “chador”. Mas Oriana voltou ao tema mal ligou o gravador. “Primeiro, ele olhou para mim espantado, depois os seus lábios esboçaram um sorriso, depois sorriu a sério e finalmente riu-se.”

Quando a entrevista acabou, Ahmed sussurrou-lhe: ‘‘Acredite, nunca vi o meu pai rir. Acho que você foi a única pessoa no mundo que o fez rir.”

Oriana, “o faquir”

Consta que Khomeini aceitara encontrar-se com Fallaci porque a entrevista que ela fizera no início da década a Reza Pahlevi causara grandes danos à imagem do então Xá do Irão. Mas a italiana gostava tanto de um como do outro, descobriria rapidamente o imã. Quando este lhe disse que a revolução que liderava era movida pelo amor, ela retorquiu: “Amor ou fascismo? A mim parece-me fanatismo, do mais perigoso tipo: do tipo fascista.”

Muitos anos depois, instada a escrever sobre o 11 de Setembro, iria voltar à ideia de que o fundamentalismo islâmico é o renascimento do fascismo contra o qual lutara. O seu artigo de opinião, inflamado, seria tão mal recebido como tinha sido décadas antes a sua posição contra o aborto. Embora muito ligada à família, Oriana deixou sempre para segundo plano a sua vida pessoal, nunca se recompondo do facto de ter sofrido um aborto espontâneo.

Nada ternurenta, mas muito apaixonada, teve relações curtas com alguns camaradas jornalistas, que muitas vezes terminavam com ela a deixar de lhes falar. “[Enviava-os] para a Sibéria das minhas emoções”, dizia.

O grande amor da sua vida foi Alexandros (“Alekos”) Panagoulis, um político e poeta grego que se opôs ativamente à junta militar, a quem Oriana dedicou o livro Un Uomo. Conhecido na resistência como O Invencível, morreu em circunstâncias estranhas, num acidente, em 1976. O último romance da jornalista seria com Paolo Nespoli, um soldado italiano quase trinta anos mais novo, que sonhava ser astronauta. Em 2007, quando se preparava para entrar na Estação Espacial Internacional, ele agradeceu-lhe publicamente por ter sido a mulher que tornara possível alcançar esse objetivo.

Oriana tinha morrido um ano antes, na sua amada Florença, de cancro do pulmão, um diagnóstico que recebera no final dos anos 90. A morar há muito tempo em Nova Iorque, onde ainda exclamava amiúde “Mamma mia!”, viajou para Itália de avião privado porque nenhuma companhia aérea aceitou levá-la. Na casa de repouso Santa Chiara di Firenze, onde se mostraria estoica até fechar os olhos, aos 77 anos, chamavam-lhe “o faquir”. Pouco depois, ganhava uma entrada na Enciclopédia Britânica e, sobretudo – espera-se – nos cursos de Jornalismo. Consta que também bordava e cozinhava muito bem, mas dessas suas qualidades não reza a História.



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