Uma mulher não chora, terá pensado Oriana nesse final
de tarde de outubro? Aquela não era a primeira vez em que se via numa situação
difícil. Os tiros do Batalhão Olímpia, o grupo paramilitar que disparava sobre
os estudantes na Praça das Três Culturas de Tlatelolco, no centro histórico da
Cidade do México, eram bem reais mas, que diabo!, há um ano que ela sabia no
terreno o que era uma guerra. Já estivera várias vezes no Vietname, sempre com
a mesma mochila onde escrevera que o seu corpo deveria ser entregue ao
embaixador de Itália em caso de KIA (killed in action, morta em combate).
“Uma rapariga não chora, não deve chorar”, dissera-lhe
o pai depois de lhe pregar uma chapada, tinha ela 14 anos e pela primeira vez
tremia de medo durante um bombardeamento dos Aliados na II Guerra Mundial, em
Florença. “Chorava de uma forma silenciosa, composta, sem gemidos, sem soluços,
mas ele deu por isso”, conta no livro A Raiva e o Orgulho, o seu último,
escrito no rescaldo do 11 de Setembro. Nunca mais voltara a derramar lágrimas
em público; não iria fazê-lo agora, embora tivesse a sensação de estar frente a
um pelotão de fuzilamento.
“Na guerra, às vezes há uma hipótese, mas ali não
havia nenhuma”, recorda a jornalista num outro livro, Nada e Assim Seja,
que escreveu sobre a guerra do Vietname. “[Em Tlatelolco], encostaram-nos a uma
parede, não podíamos mexer-nos; mais tarde aparecia-me com frequência o
pesadelo de um escorpião rodeado de chamas.”
Oriana viajara para a Cidade do México especificamente
para cobrir os protestos dos estudantes universitários. Naquela tarde de 2 de
outubro de 1968, em vésperas dos Jogos Olímpicos, refugiara-se com um grupo de
jovens manifestantes no edifício Chihuahua, de imediato rodeado pelos
paramilitares, o exército e a polícia. Um deles, Manuel Gómez Muñoz, então
representante do Conservatório Nacional no Conselho Nacional de Greve, que
falava italiano porque estudava canto lírico, viu-a ser alvejada duas vezes no
momento em que os obrigaram a trocar de sala. “A primeira coisa que me
perguntou foi se tinha sido nos rins, se tivesse sido estaria acabada.”
Não tinha. A jornalista ainda seria arrastada sem
piedade e roubada de todos os seus pertences, antes de ser levada para o
hospital. Alguém romancearia que chegou a ser dada como morta e deixada numa
morgue improvisada – não é verdade. Certo é que nunca mais voltou ao México
depois desta trágica tarde que ficou conhecida como o Massacre de Tlatelolco,
mas mais por ter ficado com azar ao país, diria, do que por medo.
Bonita, petite, de olhos azuis-acinzentados
enfatizados pelo eyeliner, Oriana Fallaci era menos frágil do que aparentava. A
voz rouca dos cigarros e o sotaque sexy ajudavam a construir essa primeira
impressão que se desvanecia ao desafiar – destemida – os todo-poderosos, uma e
outra vez apanhados de surpresa. As suas entrevistas a políticos e governantes
eram campos de batalha, com os entrevistados a acabarem invariavelmente numa
imaginária coleção de peles. Para ela, o poder era desumano, um fenómeno
detestável, e por isso tudo fazia para o desmascarar.
Uma espécie de bruxa
O rol de duas décadas de entrevistas e o seu método
perturbador impressionam. Ao coronel Muammar Kadhafi, perguntou, sem rodeios:
“Sabe que é pouco amado?” Com Lech Walesa começou cheia de ironia: “Já alguém
lhe disse que é parecido com Estaline? Fisicamente, quero dizer.” Importunou
Ariel Sharon com o significado da palavra “terrorista”, acusando-o de ele
próprio ter sido um. E, finalmente, frente a Makarios III, então Presidente do
Chipre e patriarca da Igreja Ortodoxa Grega, quis logo saber se ele era um
apaixonado por mulheres (sendo que o seu silêncio acabou a comprometê-lo).
Escreva-se ainda que Henry Kissinger repetiu inúmeras
vezes ter tido com ela a conversa “mais desastrosa” da sua vida (as suas
relações com Nixon esfriariam em consequência dela), mas que foi a entrevista
ao ayatollah Khomeini a fazer dela uma lenda, já se vai ver porquê.
Antes de qualquer entrevista, preparava-se
obsessivamente porque as via como “um exame mútuo, um teste aos nervos”, lê-se
na biografia Oriana Fallaci: The Journalist, the Agitator, the Legend,
de Cristina De Stefano. “Nas minhas entrevistas, não ajo apenas com as minhas
opiniões [era uma mulher de esquerda], mas também com as minhas emoções; todas
as minhas entrevistas são dramas”, explicaria. “Ouço realmente as pessoas e
tenho instinto, sou uma espécie de bruxa.”
Quanto às perguntas, quase sempre usadas para provocar
o seu interlocutor, justificava-se assim: “São brutais porque a procura da
verdade é uma espécie de cirurgia, e a cirurgia dói. A maioria dos meus colegas
não tem a coragem de colocar as perguntas certas.” Ser jornalista, na sua
opinião, era sinónimo de “ser desobediente, estar na oposição”.
“La Fallaci”, como era chamada por muitos, era uma
mulher corajosa e a genética poderá explicar em parte essa sua característica.
O pai, Edoardo Fallaci, um marceneiro antifascista, seria preso e torturado em
1944, por causa de um depósito de armas recebidas dos americanos. A mãe, Tosca
Cantini, órfã de um anarquista, havia de o encontrar ao fim de dois dias, na
Villa Triste, conhecida como “a casa da tortura”, enfrentando o sinistro major
Carità para o tirar de lá vivo. “Senhora, não tenho tempo para perder. O seu
marido será executado amanhã de manhã, às seis. Pode vestir-se de preto”,
aconselhou o “Sr. Caridade”.
“A minha mãe levantou-se e disse-lhe: ‘Mario Carità,
amanhã de manhã vou vestir-me de preto, como disse, mas se o senhor nasceu do
ventre de uma mulher, diga à sua mãe para fazer o mesmo porque o seu dia vai
chegar muito em breve’”, contou Oriana à jornalista americana Margaret Talbot,
a quem deu a sua última entrevista para a New Yorker, cinco meses antes de
morrer, a 15 de setembro de 2006.
Edoardo seria poupado, passando mais um tempo na
cadeia. A mãe de Oriana abortaria naquele mesmo dia, à saída da Villa Triste.
“Chegou a nossa casa, branca como a neve, e disse:‘O pai vai ser executado
amanhã e a Elena (o nome que já tinha dado à futura criança) morreu’. Sem
lágrimas.”
Antes deste episódio, já a mais velha das quatro manas
Fallaci percorria de bicicleta a cidade e os campos vizinhos, desempenhando
tarefas clandestinas para a resistência antifascista. Tinha 14 anos, respondia
pelo nome de guerra “Emilia” e usava umas trancinhas que lhe davam um ar
inocente; ninguém desconfiaria que levava granadas de mão escondidas em alfaces
no cesto da sua bicicleta.
Leitora ávida, aliás como a sua mãe, tinha a sorte de
dormir no “quarto dos livros”. Uma noite reparou numa senhora que a olhava da
capa de um calhamaço, mesmo por cima do seu divã minúsculo, e pegou-lhe,
curiosa. Tosca ainda lhe disse “Que vergonha, isso não é coisa para crianças”,
mas acabou a incentivá-la: “Lê, lê, está tudo bem.” Eram As Mil e Uma Noites
que se tornaram os seus contos de fadas, abrindo caminho pouco depois para as
Aventuras de Jack London.
Ótima estudante, aos 17 anos já colaborava com o
jornal Il Mattino dell’Italia Centrale, seguindo os passos do seu tio
Bruno. Com o primeiro salário pôde inscrever-se na Faculdade de Medicina, mas
rapidamente teve de largar os estudos, difíceis de conciliar com a escrita,
madrugada dentro, de artigos sobre crimes e desgraças em geral.
Começava pela “cronaca nera” (notícias de
crime), o que explica a sua urgência de chegar antes dos outros às notícias,
confessou mais tarde. Seguir-se-iam as crónicas de tribunal e só depois entrou
pelos temas do dia a dia, que lhe abriram caminho para o mundo da moda e do
espetáculo. Mas, antes ainda, um artigo sobre o enterro de um comunista que a
Igreja se recusou a fazer chamou a atenção dos editores do L’Europeo.
“Estúpido trapo medieval”
Foi a trabalhar para esse semanário que, no início dos
anos 50, se mudou para Roma, onde a dolce vita atingira o seu esplendor, a
Cinecittà fervilhava e quase todas as estrelas de cinema estavam ali à mão para
serem entrevistadas. Quem diria que seria a fazer perguntas a Gina Lollobrigida
que Oriana iria iniciar a sua carreira de grande entrevistadora? “Não acho que
você seja tão estúpida como as pessoas dizem” – assim apanhou a atriz de
surpresa.
O falso pudor não era com ela, percebeu-se
imediatamente. E a técnica para levar as suas “vítimas” a revelarem aquilo que
gostariam de esconder, sobretudo o lado obscuro das suas mentes, logo aplicada.
Os rascunhos das dezenas de entrevistas que fez ao longo das mais de duas
décadas quase só dedicadas a esta arte evidenciam que nada era deixado ao acaso
– as suas afirmações, muitas vezes transvestidas de perguntas, tinham como
objetivo levar os seus entrevistados a irem baixando a guarda até à estocada
final.
Chamada a Milão, onde ficava a sede do jornal, Oriana
desatou rapidamente a correr o mundo. Em Los Angeles, teve mais umas conversas
memoráveis que compilou no seu primeiro livro, I Sette Peccati di Hollywood.
Depois começou a entrevistar os “donos disto tudo”, aceitando também ser enviada
especial e repórter de guerra, e publicando livro atrás de livro. No final dos
anos 70, investiu finalmente na ficção (o fim que sempre tinha querido alcançar
através do jornalismo), com êxito.
Será, porém, pelas suas entrevistas que ficará para a
História – e não apenas a do jornalismo. Entrevistas de antologia como aquela
que fez a ayatollah Khomeini, um político a sério “e não um fantoche como eram
Arafat ou Kadhafi”, dirá, mas que ela havia de culpar pelo fanatismo islâmico
no mundo. “Uma pena que a sua mãe, quando estava grávida, não tenha escolhido
abortar”, comentou na referida entrevista a Talbot.
O encontro dos dois merece ser recordado em detalhe,
até ao momento em que o imã abriu um sorriso e por fim não conseguiu conter uma
gargalhada. Estávamos em setembro de 1979, logo após o eclodir da revolução
iraniana, quando Oriana viajou até à cidade santa de Qom para entrevistar o
homem que declarara o Irão um estado islâmico. Ao fim de dez dias de espera e
de muita insistência, chegou finalmente o “sim” do imã, com uma condição: ela
teria de se apresentar descalça e envolvida num chador semelhante àquele que
todas as mulheres iranianas eram obrigadas a usar fora de casa.
Oriana começaria a entrevista logo ao ataque, como era
seu hábito. Uma após outra, disparou perguntas sobre o encerramento de jornais
da oposição, o tratamento dado à minoria curda iraniana e as execuções sumárias
levadas a cabo pelo novo regime, na verdade acusações a que o Khomeini ia
respondendo com metáforas e evasivas. Até que dirigiu a sua indignação para os
cada vez mais diminutos direitos das mulheres, afinal também elas obreiras do
novíssimo estado islâmico. Por exemplo, por que razão tinham as iranianas agora
de andar “escondidas como feijões debaixo de uma roupa tão incómoda e absurda”
como era o chador, que nem as deixava moverem-se livremente quanto mais
trabalhar?
Aqui, Khomeini pôs as unhas de fora, virando-as
diretamente para a italiana: essas mulheres que tinham andado a lutar ao lado
dos homens, contribuindo para a revolução, usavam todas “vestuário islâmico”,
não eram como Fallaci que andava “de cabeça descoberta por aí, arrastando atrás
de si um comboio de homens”; dessa maneira não teriam sido úteis porque
haveriam de “perturbar até as outras mulheres”.
Quase 40 anos depois, imaginamo-la a ranger os dentes
antes de dizer a frase “Não é verdade, imã”, ganhando assim tempo para puxar
atrás a culatra e descarregar com a segregação a que eram votadas as iranianas
desde a revolução: “Não podem estudar na universidade com os homens, nem
trabalhar com os homens, nem tomar banho no mar ou na piscina com os homens.
Devem mergulhar à parte com o chador. A propósito”, perguntou, irónica, “como
se faz para nadar com o chador?”
Faça-se aqui um parêntesis para lamentar a
inexistência de uma filmagem desta entrevista, se não fosse pedir muito,
realizada com duas câmaras que captassem a tensão, os olhares, a linguagem
corporal de ambos. Só as perguntas e respostas (que podemos ler em italiano no
site oriana-fallaci.com e em português no livro Entrevista Com a História) nos
deixam rever a rapidez com que Khomeini presumiu erradamente que a calaria, ao
responder: “Nada disto lhe diz respeito. Os nossos costumes não lhe dizem
respeito. Se o vestuário islâmico lhe desagrada, não é obrigada a usá-lo.
Porque ele é para as mulheres jovens e respeitáveis.” Oriana não perdeu tempo a
mostrar-se ofendida. Viu ali uma oportunidade para se afirmar e não hesitou.
“Muito gentil”, escarneceu. “E, visto que me diz isso, tiro já este estúpido
trapo medieval”, avisou, arrancando o chador.
Nesse momento – contaria a Talbot –, Khomeini
mostrou-se ofendido. “Levantou-se como um gato, ágil como um gato, uma
agilidade que nunca esperaria num homem tão velho como ele era, e deixou-me.
Tive de esperar 24 horas (ou 48?) para o ver de novo e terminar a entrevista.”
Dessa segunda vez, um dos filhos de Khomeini, Ahmed,
aconselhou-a a nem sequer usar a palavra “chador”. Mas Oriana voltou ao tema
mal ligou o gravador. “Primeiro, ele olhou para mim espantado, depois os seus
lábios esboçaram um sorriso, depois sorriu a sério e finalmente riu-se.”
Quando a entrevista acabou, Ahmed sussurrou-lhe:
‘‘Acredite, nunca vi o meu pai rir. Acho que você foi a única pessoa no mundo
que o fez rir.”
Oriana, “o faquir”
Consta que Khomeini aceitara encontrar-se com Fallaci
porque a entrevista que ela fizera no início da década a Reza Pahlevi causara
grandes danos à imagem do então Xá do Irão. Mas a italiana gostava tanto de um
como do outro, descobriria rapidamente o imã. Quando este lhe disse que a
revolução que liderava era movida pelo amor, ela retorquiu: “Amor ou fascismo?
A mim parece-me fanatismo, do mais perigoso tipo: do tipo fascista.”
Muitos anos depois, instada a escrever sobre o 11 de
Setembro, iria voltar à ideia de que o fundamentalismo islâmico é o
renascimento do fascismo contra o qual lutara. O seu artigo de opinião,
inflamado, seria tão mal recebido como tinha sido décadas antes a sua posição
contra o aborto. Embora muito ligada à família, Oriana deixou sempre para
segundo plano a sua vida pessoal, nunca se recompondo do facto de ter sofrido
um aborto espontâneo.
Nada ternurenta, mas muito apaixonada, teve relações
curtas com alguns camaradas jornalistas, que muitas vezes terminavam com ela a
deixar de lhes falar. “[Enviava-os] para a Sibéria das minhas emoções”, dizia.
O grande amor da sua vida foi Alexandros (“Alekos”)
Panagoulis, um político e poeta grego que se opôs ativamente à junta militar, a
quem Oriana dedicou o livro Un Uomo. Conhecido na resistência como O Invencível,
morreu em circunstâncias estranhas, num acidente, em 1976. O último romance da
jornalista seria com Paolo Nespoli, um soldado italiano quase trinta anos mais
novo, que sonhava ser astronauta. Em 2007, quando se preparava para entrar na
Estação Espacial Internacional, ele agradeceu-lhe publicamente por ter sido a
mulher que tornara possível alcançar esse objetivo.
Oriana tinha morrido um ano antes, na sua amada Florença, de cancro do pulmão, um diagnóstico que recebera no final dos anos 90. A morar há muito tempo em Nova Iorque, onde ainda exclamava amiúde “Mamma mia!”, viajou para Itália de avião privado porque nenhuma companhia aérea aceitou levá-la. Na casa de repouso Santa Chiara di Firenze, onde se mostraria estoica até fechar os olhos, aos 77 anos, chamavam-lhe “o faquir”. Pouco depois, ganhava uma entrada na Enciclopédia Britânica e, sobretudo – espera-se – nos cursos de Jornalismo. Consta que também bordava e cozinhava muito bem, mas dessas suas qualidades não reza a História.
na visão online...
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