"O conflito entre os enfermeiros e o Governo assumiu uma faceta
inédita nos últimos 40 anos. Com raras excepções, a conflitualidade
laboral em Portugal foi enquadrada numa lógica herdada do marxismo, mais
ou menos leninista, mas sempre com uma dose suficiente de boas maneiras
e pragmatismo, mesmo quando o tom das declarações públicas parecia
muito exaltado. No fundo, o esquema dicotómico com os mesmos actores e o
mesmo tipo de acções dominou sempre a acção sindical, com os sindicatos
a enquadrarem com punho firme qualquer tentativa de escapar à
coreografia habitual, colaborando nesse aspecto com o poder político,
independentemente das inclinações políticas. Mais ou menos “radical”, o
nosso sindicalismo manteve-se convencional e conservador. Mesmo quando
se afirma de linhagem revolucionária, tem horror a tudo o que perturbe a
ordem estabelecida.
O que a contestação dos professores não conseguiu levar adiante, para
além de uma ou outra iniciativa mais heterodoxa, está a acontecer com
os enfermeiros que, goste-se ou não, estão a levar a sua luta a fundo,
ignorando os acordos de cavalheiros de bastidores que sempre acabaram
por resolver outras disputas no passado. A exploração até aos limites da
via jurídica é apenas um exemplo. Assim como a forma de se financiar
uma greve recorreu aos novos mecanismos disponíveis no século XXI, não
me parecendo “ilegal” que qualquer cidadão se disponha a apoiar uma
causa que considere justa.
Contra isso, mobilizou-se a apatia de uns e a militância de outros. A
“Direita” perdeu a capacidade de apelar a qualquer espírito de “maria
da fonte”, a menos que estejam em causa subsídios públicos a interesses
privados, e a “Esquerda” revelou até que ponto define a sua aprovação
política e moral das lutas laborais à conformidade com o seu guião.
É lastimável que o conflito tenha derrapado para uma campanha de
maledicência pura e dura, como a que tem sido dirigida aos professores. É
embaraçoso ler acusações sem qualquer prova concreta a suportá-las
(seja de “mortes” por causa das greves, seja de tenebrosas fontes de
“financiamento”, como se tivesse a mínima moralidade nesse aspecto quem
não quer que se conheça quem financia as suas festas), ataques a uma
classe a partir de um “rosto” seleccionado para a demonizar ou
estratégias de instrumentalização do aparelho de Estado (até a ASAE)
para combater uma classe profissional só porque não alinha em passeatas e
cantorias à porta dos ministérios. Não percebo se acham que os
enfermeiros são uma cambada de idiotas instrumentalizados por ocultos
interesse na sombra, se o acesso à profissão é apenas permitido a quem
seja de “extrema-direita”.
Não são os enfermeiros que estão a degradar o SNS, como não foram os
professores a degradar uma Escola Pública que, de excesso de oferta,
passou a não ter professores disponíveis, em virtude da campanha
desenvolvida para amesquinhar a profissão nos últimos 15 anos.
No
meio disto, o Presidente da República tomou partido, afirmando algo sem
sentido, ou seja, que as greves só podem ser financiadas por fundos dos
sindicatos que as convocam e que não poderão ser apoiadas externamente, o
que significa que a “sociedade civil” não pode manifestar o seu apoio a
uma dada causa. Ora... em tantos anos de conflito, tirando o aluguer de
autocarros e distribuição de panfletos e bandeirinhas em manifestações,
nunca assisti a qualquer greve de professores que tenha tido qualquer
apoio financeiro dos respectivos sindicatos. Os “fundos de greve” são
dinamizados localmente, com sindicalizados ou não a contribuir por igual
para uma repartição equitativa, sem olhar a quotas pagas.
Sim, o “sistema” não vai ter quaisquer contemplações com os
enfermeiros e a campanha irá tornar-se mais negra e suja porque se
percebe que, depois dos professores, é a vez de os enfermeiros serem
domesticados. Com aqueles, a colaboração dos sindicatos tem sido
preciosa, bastando ver como não é dado apoio a qualquer iniciativa
independente para recuperar o tempo de serviço no Parlamento, centro da
democracia representativa; com estes, o confronto entrou num nível novo,
com as máquinas comunicacionais do Governo e dos parceiros da
“geringonça” unidas numa mesma luta para que os enfermeiros “percam o
apoio da opinião pública”.
Entre nós, as fake news passam
por aí, por notícias e boatos colocados a circular a partir de fontes
oficiais que se escondem no anonimato, enquanto articulistas de
referência apresentam como “opinião” o que não passa de outra coisa.
Para que tudo continue com dantes."
in público online...
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