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“Desobediência, a mais rara
e corajosa das virtudes”
George
Bernard Shaw
Numa
carta admirável e meticulosamente fundamentada, dirigida ao Ministro da
Educação, a propósito da suposta entrada em vigor do famigerado Acordo
Ortográfico, a médica Madalena Homem Cardoso, na sua qualidade de mãe de uma
filha de sete anos, agora a iniciar-se na arte de escrever em língua
portuguesa, informa aquele Ministro de que não poderá “anuir a que a
aprendizagem da [sua] filha seja perturbada pelo autodenominado “Acordo
Ortográfico da Língua Portuguesa (1990)” (...) o qual não é “acordo”, pois
conta com a oposição quase unânime dos especialistas em língua portuguesa e da esmagadora maioria dos
falantes-escreventes de Português de Portugal(...)”.
Não
vou aqui esmiuçar a argumentação lúcida e magnificamente articulada, que a Dra.
Madalena Cardoso desenvolve, ao longo de nove páginas, e que eu sugeriria ao
Sr. Ministro da Educação que lesse, ele mesmo, com atenção e cuidado, em vez de
a mandar analisar pelos seus colaboradores. Creia que é uma boa sugestão!
O
meu ponto é outro: na carta referida, a autora, por mais de uma vez – e isto
poderá chocar alguns leitores e, provavelmente, o Ministro e os seus
directores-gerais – incita, em termos nada ambíguos, “todos os cidadãos
portugueses” à desobediência civil,
relativamente àquele Acordo. Eu cito uma passagem só: “Todos os cidadãos portugueses (em particular os que assumem
especiais responsabilidade na transmissão do património linguístico às gerações
futuras) têm, mais que o direito, o
dever da desobediência (art.º 21º CRP: “Todos têm o direito de resistir a
qualquer ordem que ofenda os seus direitos, liberdades e garantias...”) e de objecção de consciência (art.º 41º
nº 6 CRP) a recomendações ministeriais
ilegais, além de prematuras e de impraticáveis em muitos aspectos.”
O
conceito de “desobediência civil” vem de longe e as suas raízes filosóficas
estão profundamente enraizadas no pensamento ocidental, em obras de Cícero, S.
Tomás de Aquino, John Locke, Thomas Jefferson, Henry David Thoreau ou Bertrand
Russell. A “desobediência civil” não é mais do que uma resistência passiva – de
carácter simbólico – a actos tidos por injustos e iníquos praticados pelo
Estado – actos que podem ser “legais” mas que são eticamente reprováveis. Em
África, na América e na Índia, a “desobediência civil” tem sido uma táctica
usada, com êxito, ainda que morosa e dolorosa, na obtenção dos resultados
almejados. Gandhi, na África do Sul e na Índia, e Martin Luther King, entre
outros, nos Estados Unidos, usaram de resistência passiva, isto é, de
desobediência civil, para atingirem os seus objectivos.
Em
muitos países do mundo de hoje e, em particular, na Europa (incluindo
Portugal), os cidadãos sentem-se tentados, perante as medidas de sacrifício
promulgadas, não equitativamente, para remediar uma situação
económico-financeira de quase catástrofe – de que muitos deles não foram nem
cúmplices nem culpados - , muitos deles, dizia, sentem-se seriamente tentados a
praticar actos de desobediência civil, em relação a Estados que não consideram
“pessoas de bem”: a injustiça persistente gera sempre o desejo de resistência àquilo
que se considera “o mal”.
O
conceito, repito, vem de longe, dos tempos míticos da Grécia Antiga, em que
Antígona, filha de Édipo, afrontou o Rei de Tebas, Créon, em dilema
dilacerante, que marcou a fogo a inteligência e o imaginário dos homens, ao
longo dos séculos. O
conflito, glosado na tragédia de Sófocles, resume-se em poucas palavras:
regressando a Tebas, após a morte do pai (Édipo), Antígona e sua irmã Ismena
tentam reconciliar os seus irmãos Etéocles e Polinices, que se encontravam
desavindos – Polinices, atacando a cidade e Etéocles, defendendo-a. Ambos
morrem em combate e o tio Créon, tornado Rei, pune Polinices, proibindo o seu
enterro. Antígona, movida pelo amor ao irmão e pelo horror à iniquidade do
decreto real, enterra secretamente o irmão. Entre a lei do Estado e a lei
divina (a da sua consciência, a da Justiça), optou por esta, arriscando a vida.
O
centro da peça, que ainda hoje serve de medalha às consciências em luta e
dilacera espíritos e corações, é o diálogo entre Antígona e Créon. Antes de
desferir a sentença de morte, por desobediência, o rei pergunta: “E tu,
responde-me, numa palavra e sem rodeios: conhecias a proibição que fiz
publicar?” Antígona responde com altivez. ”Conhecia. Como podia ignorá-la? Toda
a gente a conhecia.” O Rei desfere, então, a pergunta final: “E ousaste
infringir as minhas ordens?” A resposta de Antígona ficou sendo o fundamento
ardente de todas as futuras “desobediências civis”: “Ousei, porque elas não
emanavam de Zeus nem da Justiça, que habita junto às divindades infernais; e
não acreditei que um simples mortal como tu pudesse ter suficiente autoridade
para se permitir transgredir as leis não escritas mas imortais dos deuses.”
A
postulação da princesa é clara e pode “traduzir-se” deste modo: entre um
mandato falível do Estado e o imperativo mais alto da nossa consciência (o
nosso íntimo conceito de justiça e de bem), a escolha só pode ser uma: seguir o
imperativo da consciência.
Este
princípio de “desobediência civil”, a que outrora ficaria bem apelidar de
“desobediência divina”, atingiu algum estatuto de lei internacional, por
ocasião dos famosos julgamentos de Nuremberg, nos quais não foi considerado
como atenuante aos crimes cometidos pelos réus nazis o facto, por eles alegado,
de terem apenas “cumprido ordens”. Nesse famoso e controverso tribunal, foi
afirmado, de modo imperativo, o princípio de que um indivíduo pode, em certas
circunstâncias, ter que responder, em tribunal, por não ter desobedecido às leis do seu país.
Numa
belíssima versão contemporânea do mito de Antígona, da autoria do grande
dramaturgo francês, Jean Anouilh, a protagonista, pouco antes de ser mandada
para a morte, envia, por intermédio de um dos guardas, uma mensagem a seu noivo
Hémon, nos seguintes termos: “Sim. Perdão, meu querido. Sem a pequena Antígona,
vós estaríeis todos muito tranquilos. Amo-te...” É, precisamente, o papel das
Antígonas deste nosso mundo impedir-nos de ficarmos demasiado tranquilos,
quando aquilo que as iniquidades vigentes estão a pedir é o desassossego, a
intranquilidade geradora de acção e justiça. O coração indomável de Antígona é
uma luz ao fundo do túnel.
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