"A economista Mariana Abrantes de Sousa será das pessoas em
Portugal que melhor conhecem o universo das parcerias público-privadas
(PPP). O seu percurso profissional passa pela banca comercial que
financiou a Lusoponte, concessionária da Ponte Vasco da Gama, até ao
Banco Europeu de Investimentos (BEI) e ao Estado, onde assumiu funções
de controladora (controller) financeira no Ministério das Obras Públicas
de Mário Lino e Paulo Campos, do governo de José Sócrates. Hoje segue o
tema com paixão no seu blogue (PPP Lusofonia). Na hora de apurar
responsabilidades pela aventura portuguesa das PPP não poupa o
Ministério das Finanças, então liderado por Teixeira dos Santos, que
falhou no controlo da despesa de uma factura que era adiada, nem o Banco
Europeu de Investimentos (BEI), que financia sem correr o risco e sem
assumir a responsabilidade por apoiar projectos não viáveis.
Participou no projecto da Lusoponte, a que chamam a primeira
PPP portuguesa. Um ano depois de assinado, o contrato teve de ser
revisto.
Eu trabalhava no BPA e estive envolvida no projecto da Ponte Vasco
da Gama. Fazia a ligação entre a banca nacional e a estrangeira. Quando o
governo começou a aumentar as portagens – que deviam duplicar –
aconteceu o buzinão e o bloqueio na ponte. Pouco tempo depois houve uma
crise financeira que fez subir as taxas de juro, tornando o projecto
insustentável do ponto de vista financeiro. Para prosseguir foi preciso
reequilibrar, isto é, compensar a perda de receita e o aumento dos
custos financeiros.
Nessa renegociação já era visível a assimetria entre Estado e privados?
Sim. Eu estava do lado dos privados. O Estado tinha uma equipa
pontual, o Gattel, onde estavam pessoas bastantes boas e assessores
estrangeiros. Mas eram menos e estavam a fazer tudo pela primeira vez.
Estavam a aprender enquanto faziam.
O Tribunal de Contas arrasa o acordo de renegociação. Houve compensações excessivas à Lusoponte?
Inicialmente, a concessão terminava quando fosse atingido um patamar
de tráfego, o que permitia uma partilha equilibrada de risco entre o
Estado e os privados. Se houvesse muito tráfego, a concessão terminava
mais cedo. A grande renegociação em 2000 eliminou essa variabilidade. O
prazo foi aumentado e passou a ser fixo. Foi uma grande alteração na
partilha de riscos. É natural haver renegociações, mas devem manter o
equilíbrio inicial e não podem desvirtuar o contrato inicial.
E isso aconteceu na Lusoponte?
Sim. Diria que na grande maioria das renegociações tem havido uma
alteração à partilha de riscos e isso não se devia fazer em regime de
negociação directa.
Devia ser por concurso?
Em caso de uma pequena alteração de traçado, sem grande impacto nos
custos e na procura, é fácil de negociar porque se podem confirmar os
custos adicionais.
Se as alterações têm muito impacto na dinâmica do tráfego, as
negociações são mais difíceis. E se eu ainda estiver a negociar com dois
concorrentes eles vigiam--se um ao outro, equilibram-se nas propostas.
Se eu estiver a negociar só com um, estou na mão dele.
Mas o Estado também tem consultores.
O Estado está de um lado e do outro lado estão o concessionário e os
seus credores. E a banca tem um papel fundamental. O concessionário não
pode aceitar nada sem que a banca autorize.
Qual é o papel do BEI?
O BEI é o maior financiador, mas não é o maior credor porque quase
sempre tem garantias de pagamento da banca comercial. O BEI exigiu
garantias de crédito na Lusoponte e outras PPP que foram fornecidas por
bancos que à data tinham um rating aceitável. Gostava que ficasse claro o
que está a acontecer com essas garantias. Quando os bancos portugueses
perderam esse rating, há um ou dois anos, tiveram de ir buscar dinheiro
ao BCE para caucionar as garantias do BEI.
A maior ajuda que o BEI poderia dar a Portugal neste momento seria
libertar garantias de pagamento que estão caucionadas pela banca
portuguesa.
Isso aliviaria os custos das PPP?
Era importante. Não sei os montantes exactos, mas estamos a falar de
valores entre mil e 2 mil milhões de euros. O BEI tem uma postura de
risco muito especial. É o que eu chamo a postura de cinto, suspensórios,
alfinetes e fita-cola.
Ou seja, exige tudo?
Eu trabalhei no BEI, fui chefe de divisão em 1991. O BEI faz o
trabalho de casa e fica na fotografia da assinatura do contrato, mas não
assume o risco. Os credores são os bancos privados que estão a emitir
as garantias de pagamento. É crédito sem responsabilidade. Nós
precisamos de crédito com responsabilidade.
Quem financia tem de assumir responsabilidades para não apoiar projectos inviáveis como o BEI fez em Portugal?
Exactamente. Não sei se o BEI esteve envolvido em todos, mas avaliar
o risco de tráfego é crucial. O risco de construção também deve ser
ponderado, porque há soluções que são muito caras só porque há dinheiro.
Mas estamos a falar essencialmente de dois riscos: o volume do tráfego e
o willing to pay, a capacidade e disponibilidade do utilizador para
pagar as tarifas.
A revisão da Lusoponte não correu bem, mas parece que não se aprendeu nada.
Nas tarifas (portagens), a solução foi mais ou menos equilibrada. Só
mais tarde, no acordo global, é que foi tudo posto em cima da mesa e
reaberto. A verdade é que não temos aprendido. Portugal é um dos países
com mais PPP e com menos estrutura institucional para gerir PPP. A
Lusoponte foi um projecto-piloto e foi criada uma estrutura de missão
própria, que trabalhou relativamente bem. Mas depois essa estrutura foi
dispersa. Mudaram as pessoas e os advogados. Acho que houve até
documentos que não transitaram. Houve um descuido em manter a memória
institucional.
Essa é a melhor forma de desresponsabilizar.
É mais do que isso. Houve ingenuidade ou outra coisa qualquer que
convenceu quem era responsável de que não era preciso manter este
conhecimento dentro do Estado. Na banca, o gestor do contrato tem de
acompanhar desde o início até ao reembolso do último cêntimo. E se os
credores fazem isso mais deveria fazer o Estado. Portugal é um dos
poucos países que não têm uma unidade central de PPP como deve ser.
Quando tentaram criar uma na Parpública, em 2003 [Manuela Ferreira
Leite], foi um grande avanço.
Quando teve contacto com a realidade dos PPP do lado Estado?
Nunca estive directamente envolvida na negociação das PPP do lado do
Estado, mas desempenhei funções de controladora no Ministério das Obras
Públicas entre 2006 e 2009 e depois estive um ano na Saúde.
Os controladores deviam ser uma espécie de fiscais das Finanças?
Mais ou menos. Reportávamos aos dois ministros, da tutela e das
Finanças. Os controladores não estavam dentro da hierarquia, pairavam
sobre tudo. A informação não tinha de passar por nós, mas podíamos
pedi-la.
Esteve lá quando foi lançada a última geração das PPP, as subconcessões?
Mas nada disso passou por mim.
Não devia ter passado?
Não fazia parte das minhas funções. A função do controlo financeiro era a posteriori
e não estava na cadeia de decisão. Era um pouco o Tribunal de Contas
sem dentes e sem staff. Quando estava no ministério houve uma grande
transformação. Os investimentos deixaram de passar pelo PIDDAC e pelo
orçamento do ministério. A despesa com transportes e infra-estruturas
submergiu com a desorçamentação. Quando dei formação desenvolvi o
conceito do icebergue para mostrar o que estava a acontecer ao orçamento
do ministério. Havia alguma dispersão de responsabilidade, mas passava
tudo pela Parpública.
Ou seja, pelas Finanças?
Sim. Havia comissões de acompanhamento para cada projecto. As
Finanças indicavam uma pessoa da Parpública que ao final do terceiro
contrato já tinha feito o curso. O Ministério das Obras Públicas
indicava uma pessoa nova que estava sempre a começar a aprender.
Há a ideia de que a decisão das PPP rodoviárias esteve
centrada numa pessoa: o secretário de Estado Paulo Campos. Qual era o
papel das Finanças?
As Finanças deviam analisar todos os contratos e avaliar se os
critérios básicos estavam a ser observados, nomeadamente quanto ao
retorno do investimento, às cláusulas contratuais e aos riscos para o
Estado. Houve alguma confusão. O concedente é o ministério sectorial que
tem a obrigação de prestar o serviço público. As Finanças têm a tutela
financeira, mas o risco não é deles, é do Ministério das Obras Públicas.
Um dos problemas graves de desorçamentar foi que estes investimentos
saíram do orçamento do Ministério das Obras Públicas.
E deixaram de estar sujeitos ao controlo das Finanças?
É uma questão técnica. Antes a construção de estradas tinha de
passar pelo PIDDAC (Plano de Investimento e Despesas de Desenvolvimento
da Administração Central), que faz parte do orçamento anual. Uma
concessão ou PPP não passa pelo orçamento do ano. A grande falha das
Finanças foi na gestão do conjunto dos contratos. A Lei de Enquadramento
Orçamental define que a lei do Orçamento do Estado de cada ano deveria
fixar um limite para o total dos encargos assumidos com concessões
naquele ano. E isso não aconteceu. Eu acho que as Finanças até se
envolveram demasiado na contratação individual e descuraram o limite
global para PPP e isso teve consequências muito graves. E eu tive esta
discussão com muita gente (o ministro Mário Lino ouvia-me algumas vezes,
mas outras pessoas não o faziam). Argumentavam: então as pessoas de
Freixo de Espada à Cinta não têm direito a uma auto-estrada?
Não é um argumento válido?
Se estou a construir mil quilómetros de auto-estrada, posso ter 200
quilómetros sem tráfego se os primeiros 800 quilómetros tiverem boa
procura. Se estou a construir os segundos mil quilómetros já não vou ter
tráfego tão bom. As subconcessões lançadas por esse governo (de José
Sócrates) eram os terceiros mil quilómetros. Estes projectos com baixo
tráfego são da responsabilidade do Ministério das Obras Públicas, mas
também das Finanças, porque eram o financiador e deviam ter dito onde
estava o limite.
O facto de os contratos só começarem a ser pagos a partir de 2014 contribuiu para esse descuido?
Claro. Se eu não tenho de pagar este ano, não tenho de introduzir no
Orçamento deste ano. O tráfego e a valia económica do projecto são
quase académicos porque eu não tenho de pagar já. Foi aí que as Finanças
falharam. É essa factura que estamos todos a pagar. Fizemos projectos
com baixa valia em termos de tráfego. Não era possível prever a dimensão
da crise que hoje se vive, mas a quantidade de PPP que fizemos causou
parte do problema. Quando se continuou a fazer projectos de quarta e
quinta prioridade, o custo-benefício ia ser fraco.
Qual é a sua explicação para se ter avançado tanto nas estradas?
Havia dinheiro.
Havia dinheiro ou crédito?
Havia crédito, havia megalomania e a factura era para pagar depois.
Se sai de casa com 20 euros, gasta 19 euros se for poupada. Há pessoas
que saem com 20 e gastam 29. Ninguém tinha como sua a responsabilidade
de pensar no tráfego porque os projectos passaram a depender de
pagamentos por disponibilidade. É uma solução má. Qual é a solução para
projectos com tráfego insuficiente? É não os fazer.
Em Setembro de 2008 cai o Lehman Brothers e o governo adjudica as estradas a preços mais caros.
Algumas opiniões defendiam que se devia travar e a maior parte dos
países travou. Em Portugal não se parou por vários motivos. Havia uma
grande pressão internacional para continuar porque era preciso manter a
actividade. Toda a gente entrou em pânico e a resposta foi dar estímulos
à economia. Depois houve a pressão das entidades envolvidas, os bancos,
as construtoras. Apresentar propostas custa alguns milhões de euros. E
em terceiro lugar havia a ideia de chutar para a frente. Como não era
para pagar logo não havia travão orçamental, porque a tal cláusula que
devia servir de travão não estava a ser aplicada. O único travão era o
Tribunal de Contas, com o visto prévio. As regras diziam que a proposta
final não podia ser menos vantajosa para o concedente que a inicial. Não
foi surpresa que o tribunal tivesse recusado o visto.
Mas discutiu-se dentro do governo a possibilidade de não fazer?
Não estive envolvida nessas discussões, mas sei que isso foi
discutido na medida do possível. Quando há determinação política de que é
para ir para a frente, quem é que vai dizer que não?
Essa determinação veio do primeiro-ministro?
Imagino que sim. Mas o que ficou claro para o mercado é que o Estado
era visto como um mãos-largas. Isso aconteceu em particular nas
renegociações. Se for demasiado facilitador, assume demasiados riscos e
as agências de rating cobram isso. Se sou condescendente e quero fazer
um projecto à viva força que não é muito forte, como é que faço? Ofereço
mais garantias, faço pagamentos maiores.
A falta de visão de conjunto repete-se na comissão de inquérito às PPP que avalia concessão a concessão.
O problema das PPP em Portugal não é de um ou outro contrato. Se
houver um contrato mau, o efeito dilui-se. O problema é de gestão do
programa de concessões. Temos cem PPP em busca de um programa. É mais
fácil entrar nas coisas picuinhas da cláusula de cada contrato que ter
uma visão distanciada que diga quais devem ser os princípios básicos das
PPP, como se vai avaliar se o programa e os casos individuais são
eficientes e sustentáveis.
Sente que alguma parte da sua mensagem como controladora passou?
Fiz muitos alertas, mas não sei quais foram seguidos. As decisões
não passavam por mim nem por outros controladores. A nossa função era a posteriori.
Uma das coisas que fazia era olhar para a imagem dos projectos no
mercado. Do lado do Estado tem de haver rigor e exigência a defender os
interesses públicos. Pagamos duas vezes quando o Estado é mãos-largas.
Se pagar todas as facturas que me puserem à frente, sem conferir, o
outro lado vai pôr mais coisas na factura.
O privado sai sempre a ganhar?
O Estado pode oferecer muitas facilidades, mas os bancos e os
concessionários privados têm o risco de o concedente não poder pagar. E
se este for demasiado generoso não vai cumprir todas as garantias e
facilidades que concedeu. É o risco da contraparte.
Quem empresta deve assumir responsabilidades quando concede créditos inviáveis?
Quando a dívida é muito elevada, não basta ao devedor apertar o
cinto. O credor inicial tem de assumir parte das perdas derivadas dos
seus erros de concessão de crédito. Os credores internacionais foram
aproveitando este longo interregno de default que não é default, desde
pelo menos 2009, para reduzir a sua exposição aos países
sobreendividados, passando a batata quente do crédito malparado aos
credores oficiais, como o BCE. Estamos a chegar ao fim desta fase que
tanto beneficiou alguns credores, sem aliviar os mutuários (os países em
apuros). E a austeridade revelou-se insuficiente para reduzir a
divergência entre os países com superavit e deficitários.
Qual deve ser então o caminho?
Agora começam as negociações duras. Vai ser necessário obrigar os
credores não oficiais que ainda restam a renegociar condições de
pagamento. Estou a falar de uma reestruturação da dívida e partilha de
sacrifícios entre devedores e credores. O regresso aos mercados, isto é,
a busca de novas fontes de financiamento, que são sempre mais caras,
não pode resolver o problema da dívida excessiva. Precisamos de
condições de pagamento a 20 anos e a 2% e não a dois anos e 5,5%."
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