sexta-feira, 26 de outubro de 2012

opinião... da educação... e da escola hoje... nas palavras de joaquim azevedo...!

"Em idas a escolas e em conversas com alguns colegas professores e diretores de escolas/agrupamentos tenho-me dado conta de que se está a acentuar um movimento de atrofia da capacidade de as escolas se regenerarem para levarem por diante a sua muito difícil missão de educar todos os portugueses. E que esta tendência vai a par do reforço de uma escola seletiva, com base no nível socioeconómico e cultural das famílias e das crianças e jovens.

Quais são os dados que me conduzem a esta conclusão? Vários, mas destaco aqui apenas dois.

1. O agrupamento forçado entre escolas, com a decapitação de importantes lideranças, construídas através de longos anos de trabalho persistente e muito sério. Estas têm sido substituídas, muitas vezes, por lideranças “sopradas” por dirigentes partidários locais à direção político-administrativa do MEC, lideranças em que raramente a competência acompanha a “partidarite”. Primeiro, o processo de agrupamento de escolas não tinha que ser este. E este é o ponto mais importante. É preciso que haja outros cenários em cima da mesa, que se estudem outros modelos de reorganização da administração da educação, para que nos momentos certos não fiquemos nem prisioneiros nem apáticos diante de movimentos políticos deste tipo (como infelizmente se viu nos últimos quatro anos! Porquê tamanha apatia dos professores e dos diretores, que tão tropedeados foram na sua dignidade?).

Como tenho repetido, o necessário agrupamento administrativo entre escolas, que urge realizar porque não só não temos recursos para tanta desorganização e duplicação de funções, como podemos ganhar em articular níveis de ensino e diferentes tipos de escolas, em cada comunidade local, não tem de conduzir à decapitação das lideranças pedagógicas das unidades escolares existentes, antes pode e deve aproveitá-las e criar novas. Segundo, o agrupamento de escolas podia ter ido muito mais fundo e longe em termos de reorganização e agrupamento de funções administrativas e financeiras de escolas, em municípios e agrupamentos de municípios, indo mais fundo e mais longe em reforço das lideranças pedagógicas muito descentralizadas nas escolas.

O nosso país é pródigo em deitar fora a criança com a água do banho, pensando que está a ir sempre em frente, cheio de entusiasmo político-partidário, empurrando o país para... trás. Estas novas governações administrativo-pedagógicas, promovendo fusões incompreensíveis e desnecessárias (diz a literatura da gestão que uma fusão entre duas empresas é um dos processos mais lentos e com mais escolhos), restringe e seca tanto caminho percorrido e bem percorrido. Pelo menos que se abram concursos públicos, que os processos sejam transparentes! Mas não há necessidade nenhuma de se percorrer este caminho! A política define-se por fazer escolhas e não por aceitar inevitabilidades! Aliás, com tantas inevitabilidades nos querem os mais variados poderes confrontar, que o espaço para respirar em democracia começa a ficar mais exíguo.

A atrofia é evidente: cada vez mais o procedimento administrativo se sobrepõe ao pedagógico e ambos se desarticulam, ao mesmo tempo que as lideranças escolares tendem a enquadrar-se em cadeias de clientelismo, em vez de cadeias de compromissos solidários entre os profissionais e as famílias em prol do bem educacional comum.

2. A seletividade crescente que se está a operar nas escolas públicas, uma seletividade que, em nome do proclamado mérito escolar, deixa de fora os mais pobres, os que vêm de meios familiares sem cultura escolar, os que não aprendem ao ritmo do mainstream, do proclamado politicamente correto.

Vejam-se os efeitos dos rankings, promovidos pelo MEC, que descontextualizam resultados escolares dos contextos da sua produção, veja-se o reforço das “novas vias” vocacionais e profissionais, proclamadas como as vias para os alunos que reprovam e repetem, para os que não são inteligentes, como dizia por estes dias publicamente um diretor escolar.

O problema nunca são as medidas em si, elas até podem vir carregadas de bondade, mas estão cheias de sinais, bem visíveis, de uma convicção que é muito bem apreendida pela sociedade portuguesa: a escola pública não produz melhores resultados escolares porque há pobres e porque há famílias que não detêm o capital cultural necessário para acompanhar e estimular os seus filhos e porque isso é um aborrecimento e porque contra isso nada há a fazer. Se a minha escola quer continuar a ser bem vista no seu contexto (porque quem determina em grande medida o modo que ela se vê são os líderes e estes são letrados e, em geral, os que chegaram ao topo da hierarquia escolar), tem de selecionar os seus alunos, por ação ou por omissão, às claras ou subrepticiamente.

Se pudéssemos, se não fosse assim tão politicamente incorreto, repúnhamos de pé os antigos liceus e reforçávamos as antigas escolas técnicas, industriais e comerciais, e até criávamos um terceiro tipo de escolas, “muito mais práticas”, como me dizem, escolas para os bárbaros que agora chegam às escolas. Tudo isto apenas porque... a escola pública realmente se democratizou, em termos de acesso, e isso bastou para nos deixar institucionalmente atarantados e com as cabeças confusas.

Não nos apercebemos que a democracia avançou mais nas palavras e em parte dos atos, por exemplo na abertura das escolas a todos, do que avançou nas nossas mentalidades, desde os dirigentes políticos até aos dirigentes das escolas. Falta-nos, além de abrir a escola a todos, abri-la a cada uma e a cada um, tornando a sua escolarização efetiva. Falta-nos cumprir uma parte essencial de uma escola pública verdadeiramente democrática. E então, resolvemos desistir a meio, andar com a democracia para trás, diante de algumas adversidades, como a da falta de recursos financeiros. E então, desatámos a fazer da escola pública a escola seletiva, em nome de uma meritocracia tacanha e dominante, baseada na exclusão de uma parte dos cidadãos, exclusão referenciada a um grupo cultural e a um único tipo de excelência. Melhor, uns têm direito a uns benefícios, diríamos mais ampliados, outra a outros, mais curtos.

Desculpem esta crueza e simplicidade, mas é escandaloso o que se passa diante dos nossos olhos, feito pela mão de tantos colegas, muito dedicados à escola e convictamente democratas, tão atarantados como eu e como todos nós. É preciso parar para pensar e não entrar, deste modo acrítico e sempre urgente, para dentro da voragem do que acontece e do que nos é dito que tem de ser assim e que tem de ser para já; porque pode suceder que, de um momento para o outro, acordemos a fazer exatamente o que dizemos a nós mesmos, ao adormecer, que nunca faremos. E até se pode dar o caso de isto mesmo já estar a acontecer.

A ditadura da urgência, se passa por cima das pessoas concretas e das suas instituições, dita o que é menos importante e até muito facilmente o que é nocivo para elas.

Não basta proclamar todas as noites, em reuniões públicas, a defesa da escola pública e democrática. É preciso construi-la, à luz de cada dia, dia após dia, com as pessoas concretas e dando especial atenção e cuidado, em particular, aos alunos mais pobres, aos que não sabem bem ao que andam, dentro das nossas escolas, aos que vagueiam por ali porque tem de ser, aos que dizem que não querem estudar. A grande maioria das nossas escolas são boas escolas e com bons profissionais, por vezes com fracas lideranças (que se podem e devem substituir, decididamente e com decência), por isso, o cuidado para com estes alunos, criando os melhores percursos educativos para cada um, faz-se e é possível, sem criar mais vias e enunciar mais estigmas, pois facilmente se transformam em condenações públicas à subserviência.

Não há portugueses de segunda, nem a escola pública pode estar ao serviço da sua consagração; só há portugueses de primeira e as escolas públicas têm de estar aptas a todos consagrar. Para tal, tem de tratar diferentemente os diferentes, porque todos são capazes e porque para cada um há níveis de excelência a desenvolver. A escola pública não é a escola que diz dar muito a todos e que acaba por dar pouco a muitos.

Não me venham com as histórias de que nos impõem turmas assim e assim, de que isto é muito bonito na teoria, mas na prática, de que “se visse o raio de alunos que eu tenho na sala”...porque de bons e imensos alibis está a degradação da escola pública cheia! Conheço muitas escolas públicas que acolhem todos e promovem cada um! São escolas como as outras, no sentido de que estão sujeitas às mesmas normas e aos mesmos ditames da tutela, que tudo tutela e tanto atrapalha! Não são escolas como as outras, no sentido em que têm outras lideranças, focam a sua missão em outras prioridades e objectivos e ações, fazem um enorme esforço em partilhar estes processos entre todos os atores da escola e da comunidade, mobilizam o trabalho em equipas docentes, pedem ajuda externa para suprir as competências que sabem que não têm, lutam anos a fio por essas prioridades e objectivos, humilde e persistentemente, melhorando em cada ano os seus resultados, enquanto escolas abertas a todos e promotoras de cada um.

São estas escolas, tão pequeninas e esquecidas como a de Beiriz (Póvoa de Varzim) e de Estremoz (entre muitas outras), que dão corpo a programas nacionais, aprovados e incentivados pelo MEC, de promoção do sucesso escolar, que estão agora a ajudar a melhorar os processos educativos em muitas outras escolas; são estes, os processos, não mais vias e mais exames, que podem vir a melhorar os resultados escolares. E estes não melhoraram naquelas duas escolas (e em muitas outras) pelo incremento da asfixia pedagógica. Será que isto, tão prático e concreto, não nos ajuda a ver qual é o caminho? Será que o melhor caminho, neste tempo de crise, é a atrofia pedagógica das escolas? Os tempos de crise são (queremos que sejam) os tempos em que é melhor a escola pública e democrática entrar de férias, desistir do essencial?

Já é tempo, neste campo como em outros, de nos deixarmos de discursos épicos sobre a escola pública e de deitarmos (continuarmos a deitar) os pés ao caminho, humildemente e em equipas fortes, aqui e ali, serenamente e sem pressas, cada vez em mais locais e com mais parceiros. Porque uma escola para cada um não tem nada de épico, não enche os olhos dos eleitores, dá muito mais trabalho, ... mas vale bem toda uma vida!"

daqui.

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