"Em idas a escolas e em conversas com alguns colegas professores e
diretores de escolas/agrupamentos tenho-me dado conta de que se está a
acentuar um movimento de atrofia da capacidade de as escolas se
regenerarem para levarem por diante a sua muito difícil missão de educar
todos os portugueses. E que esta tendência vai a par do reforço de uma
escola seletiva, com base no nível socioeconómico e cultural das
famílias e das crianças e jovens.
Quais são os dados que me conduzem a esta conclusão? Vários, mas destaco aqui apenas dois.
1.
O agrupamento forçado entre escolas, com a decapitação de importantes
lideranças, construídas através de longos anos de trabalho persistente e
muito sério. Estas têm sido substituídas, muitas vezes, por lideranças
“sopradas” por dirigentes partidários locais à direção
político-administrativa do MEC, lideranças em que raramente a
competência acompanha a “partidarite”. Primeiro, o processo de
agrupamento de escolas não tinha que ser este. E este é o ponto mais
importante. É preciso que haja outros cenários em cima da mesa, que se
estudem outros modelos de reorganização da administração da educação,
para que nos momentos certos não fiquemos nem prisioneiros nem apáticos
diante de movimentos políticos deste tipo (como infelizmente se viu nos
últimos quatro anos! Porquê tamanha apatia dos professores e dos
diretores, que tão tropedeados foram na sua dignidade?).
Como
tenho repetido, o necessário agrupamento administrativo entre escolas,
que urge realizar porque não só não temos recursos para tanta
desorganização e duplicação de funções, como podemos ganhar em articular
níveis de ensino e diferentes tipos de escolas, em cada comunidade
local, não tem de conduzir à decapitação das lideranças pedagógicas das
unidades escolares existentes, antes pode e deve aproveitá-las e criar
novas. Segundo, o agrupamento de escolas podia ter ido muito mais fundo e
longe em termos de reorganização e agrupamento de funções
administrativas e financeiras de escolas, em municípios e agrupamentos
de municípios, indo mais fundo e mais longe em reforço das lideranças
pedagógicas muito descentralizadas nas escolas.
O nosso país é
pródigo em deitar fora a criança com a água do banho, pensando que está a
ir sempre em frente, cheio de entusiasmo político-partidário,
empurrando o país para... trás. Estas novas governações
administrativo-pedagógicas, promovendo fusões incompreensíveis e
desnecessárias (diz a literatura da gestão que uma fusão entre duas
empresas é um dos processos mais lentos e com mais escolhos), restringe e
seca tanto caminho percorrido e bem percorrido. Pelo menos que se abram
concursos públicos, que os processos sejam transparentes! Mas não há
necessidade nenhuma de se percorrer este caminho! A política define-se
por fazer escolhas e não por aceitar inevitabilidades! Aliás, com tantas
inevitabilidades nos querem os mais variados poderes confrontar, que o
espaço para respirar em democracia começa a ficar mais exíguo.
A
atrofia é evidente: cada vez mais o procedimento administrativo se
sobrepõe ao pedagógico e ambos se desarticulam, ao mesmo tempo que as
lideranças escolares tendem a enquadrar-se em cadeias de clientelismo,
em vez de cadeias de compromissos solidários entre os profissionais e as
famílias em prol do bem educacional comum.
2. A seletividade
crescente que se está a operar nas escolas públicas, uma seletividade
que, em nome do proclamado mérito escolar, deixa de fora os mais pobres,
os que vêm de meios familiares sem cultura escolar, os que não aprendem
ao ritmo do mainstream, do proclamado politicamente correto.
Vejam-se
os efeitos dos rankings, promovidos pelo MEC, que descontextualizam
resultados escolares dos contextos da sua produção, veja-se o reforço
das “novas vias” vocacionais e profissionais, proclamadas como as vias
para os alunos que reprovam e repetem, para os que não são inteligentes,
como dizia por estes dias publicamente um diretor escolar.
O
problema nunca são as medidas em si, elas até podem vir carregadas de
bondade, mas estão cheias de sinais, bem visíveis, de uma convicção que é
muito bem apreendida pela sociedade portuguesa: a escola pública não
produz melhores resultados escolares porque há pobres e porque há
famílias que não detêm o capital cultural necessário para acompanhar e
estimular os seus filhos e porque isso é um aborrecimento e porque
contra isso nada há a fazer. Se a minha escola quer continuar a ser bem
vista no seu contexto (porque quem determina em grande medida o modo que
ela se vê são os líderes e estes são letrados e, em geral, os que
chegaram ao topo da hierarquia escolar), tem de selecionar os seus
alunos, por ação ou por omissão, às claras ou subrepticiamente.
Se
pudéssemos, se não fosse assim tão politicamente incorreto, repúnhamos
de pé os antigos liceus e reforçávamos as antigas escolas técnicas,
industriais e comerciais, e até criávamos um terceiro tipo de escolas,
“muito mais práticas”, como me dizem, escolas para os bárbaros que agora
chegam às escolas. Tudo isto apenas porque... a escola pública
realmente se democratizou, em termos de acesso, e isso bastou para nos
deixar institucionalmente atarantados e com as cabeças confusas.
Não
nos apercebemos que a democracia avançou mais nas palavras e em parte
dos atos, por exemplo na abertura das escolas a todos, do que avançou
nas nossas mentalidades, desde os dirigentes políticos até aos
dirigentes das escolas. Falta-nos, além de abrir a escola a todos,
abri-la a cada uma e a cada um, tornando a sua escolarização efetiva.
Falta-nos cumprir uma parte essencial de uma escola pública
verdadeiramente democrática. E então, resolvemos desistir a meio, andar
com a democracia para trás, diante de algumas adversidades, como a da
falta de recursos financeiros. E então, desatámos a fazer da escola
pública a escola seletiva, em nome de uma meritocracia tacanha e
dominante, baseada na exclusão de uma parte dos cidadãos, exclusão
referenciada a um grupo cultural e a um único tipo de excelência.
Melhor, uns têm direito a uns benefícios, diríamos mais ampliados, outra
a outros, mais curtos.
Desculpem esta crueza e simplicidade, mas é
escandaloso o que se passa diante dos nossos olhos, feito pela mão de
tantos colegas, muito dedicados à escola e convictamente democratas, tão
atarantados como eu e como todos nós. É preciso parar para pensar e não
entrar, deste modo acrítico e sempre urgente, para dentro da voragem do
que acontece e do que nos é dito que tem de ser assim e que tem de ser
para já; porque pode suceder que, de um momento para o outro, acordemos a
fazer exatamente o que dizemos a nós mesmos, ao adormecer, que nunca
faremos. E até se pode dar o caso de isto mesmo já estar a acontecer.
A
ditadura da urgência, se passa por cima das pessoas concretas e das
suas instituições, dita o que é menos importante e até muito facilmente o
que é nocivo para elas.
Não basta proclamar todas as noites, em
reuniões públicas, a defesa da escola pública e democrática. É preciso
construi-la, à luz de cada dia, dia após dia, com as pessoas concretas e
dando especial atenção e cuidado, em particular, aos alunos mais
pobres, aos que não sabem bem ao que andam, dentro das nossas escolas,
aos que vagueiam por ali porque tem de ser, aos que dizem que não querem
estudar. A grande maioria das nossas escolas são boas escolas e com
bons profissionais, por vezes com fracas lideranças (que se podem e
devem substituir, decididamente e com decência), por isso, o cuidado
para com estes alunos, criando os melhores percursos educativos para
cada um, faz-se e é possível, sem criar mais vias e enunciar mais
estigmas, pois facilmente se transformam em condenações públicas à
subserviência.
Não há portugueses de segunda, nem a escola pública
pode estar ao serviço da sua consagração; só há portugueses de primeira e
as escolas públicas têm de estar aptas a todos consagrar. Para tal, tem
de tratar diferentemente os diferentes, porque todos são capazes e
porque para cada um há níveis de excelência a desenvolver. A escola
pública não é a escola que diz dar muito a todos e que acaba por dar
pouco a muitos.
Não me venham com as histórias de que nos impõem
turmas assim e assim, de que isto é muito bonito na teoria, mas na
prática, de que “se visse o raio de alunos que eu tenho na
sala”...porque de bons e imensos alibis está a degradação da escola
pública cheia! Conheço muitas escolas públicas que acolhem todos e
promovem cada um! São escolas como as outras, no sentido de que estão
sujeitas às mesmas normas e aos mesmos ditames da tutela, que tudo
tutela e tanto atrapalha! Não são escolas como as outras, no sentido em
que têm outras lideranças, focam a sua missão em outras prioridades e
objectivos e ações, fazem um enorme esforço em partilhar estes processos
entre todos os atores da escola e da comunidade, mobilizam o trabalho
em equipas docentes, pedem ajuda externa para suprir as competências que
sabem que não têm, lutam anos a fio por essas prioridades e objectivos,
humilde e persistentemente, melhorando em cada ano os seus resultados,
enquanto escolas abertas a todos e promotoras de cada um.
São estas
escolas, tão pequeninas e esquecidas como a de Beiriz (Póvoa de Varzim) e
de Estremoz (entre muitas outras), que dão corpo a programas nacionais,
aprovados e incentivados pelo MEC, de promoção do sucesso escolar, que
estão agora a ajudar a melhorar os processos educativos em muitas outras
escolas; são estes, os processos, não mais vias e mais exames, que
podem vir a melhorar os resultados escolares. E estes não melhoraram
naquelas duas escolas (e em muitas outras) pelo incremento da asfixia
pedagógica. Será que isto, tão prático e concreto, não nos ajuda a ver
qual é o caminho? Será que o melhor caminho, neste tempo de crise, é a
atrofia pedagógica das escolas? Os tempos de crise são (queremos que
sejam) os tempos em que é melhor a escola pública e democrática entrar
de férias, desistir do essencial?
Já é tempo, neste campo como em
outros, de nos deixarmos de discursos épicos sobre a escola pública e de
deitarmos (continuarmos a deitar) os pés ao caminho, humildemente e em
equipas fortes, aqui e ali, serenamente e sem pressas, cada vez em mais
locais e com mais parceiros. Porque uma escola para cada um não tem nada
de épico, não enche os olhos dos eleitores, dá muito mais trabalho, ...
mas vale bem toda uma vida!"
daqui.
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