dado que a coisa não é muito legível... fica o texto...!
"O modo como o Governo trata as Forças Armadas revela-se na funcionalização dos seus membros
Em vez de andar a fazer
cortes avulsos nas Forças Armadas, como se fosse possível cortar nas
Forças Armadas como se corta numa qualquer repartição pública - que é o
máximo que o pensamento governamental alcança -, dever-se-ia fazer uma
outra discussão muito mais séria, muito mais importante, muito mais útil
e muito menos ambígua: a de saber se Portugal precisa de ter Forças
Armadas ou não. E, em função da resposta, tirar as consequências.
É
uma discussão completamente legítima do ponto de vista democrático, uma
opção possível, com consequências como todas as opções, mas que os
portugueses podem querer fazer. Seria uma discussão muito mais sadia do
que o que se está a fazer, que é, com muitas proclamações governamentais
patrioteiras, muita parada em dias da pátria, muita revista às tropas
na entrada das cerimónias, construir-se um ser disforme que não serve
para coisa nenhuma. E é exactamente porque as pessoas percebem que é
assim que se acaba por cavar ainda mais o fosso entre os portugueses e
as suas Forças Armadas e dar razão aos que questionam se, sendo o que
são, as nossas Forças Armadas têm qualquer sentido e justificam o
dinheiro que com elas se gasta.
O modo como o Governo trata as
Forças Armadas, a completa ausência de um pensamento sobre o seu
sentido, revela-se na funcionalização dos seus membros, como se se
tratasse de uns funcionários públicos particularmente inúteis que andam a
brincar às guerras imaginárias, cheios de chefes e sem soldados, não
podendo defender o país, nem defender os portugueses, nem invadir
ninguém, com armas cada vez mais obsoletas e sem dinheiro sequer para as
disparar, sem equipamento e sem combustíveis, com reduzidos efectivos
por metas financeiras sem nexo e coerência operacional, não servindo
para nenhuma missão.
Não vale a pena estar a escrever com pompa e
circunstância "conceitos estratégicos de defesa nacional", se nada
daquilo serve para qualquer estratégia, nem para a defesa, nem tem
objectivo nacional. Duvido até que se tratá-lo como "conceito" não seja
uma ofensa à filosofia. O que conta nesta triste situação é que o
Governo português de José Sócrates, com o beneplácito de Passos Coelho e
Paulo Portas, permitiu que um corpo de funcionários internacionais nos
impusesse um documento em inglês que incluía medidas sobre as Forças
Armadas, algo que mostra como a demissão da soberania não é apenas o
resultado da bancarrota, mas também de uma perda de qualquer vergonha
nacional por parte da elite do poder. Nenhum país que se respeitasse a
si próprio permitiria que, num documento daquele teor, se estipulassem
medidas sobre as Forças Armadas, mesmo que fosse normal que em sede
própria pensasse em reduzir os seus gastos. Só que o fazia dentro e não
por imposição de fora.
Claro que quando se trata de um corpo como
as Forças Armadas como sendo apenas uma parte da função pública,
suscita-se uma resposta que é do mesmo tipo: os militares tornam-se
corporativos e reagem como se fossem uma corporação, defendendo salários
e regalias. Mas o que é que se esperava, são tratados como funcionários
menores de uma instituição sem utilidade pública, cara e inútil,
ameaçada de extinção, e eles ficam-se? Não ficam, porque no actual
contexto quem se fica perde duas vezes, até porque o Governo só é forte
com os mais fracos. Não conseguiram os médicos e os reitores das
universidades concessões e recuos quando começaram a protestar
publicamente? É por isso que a situação entre os militares é grave, mas
mais grave ainda é a situação das Forças Armadas nessa entidade tão
estragada que é hoje Portugal.
Tudo isto traduz um caminho de
desagregação identitária que uma geração sem saber nem memória faz com
ao maior dos desplantes e inconsciência. Vai a par com um surto de
federalismo subserviente, a aceitação de um Parlamento que perdeu o
poder orçamental, a contínua deslocação das decisões de governação para a
burocracia de Bruxelas. Se o caminho é este, como é que se poderia
esperar que houvesse uma qualquer ideia sobre as Forças Armadas? O
problema é que haver há, só não pode ser enunciada. A ideia é que as
Forças Armadas são um anacronismo, demasiado caro, um corpo esquisito
que não fala a linguagem da modernidade, e se rege por valores, essa
coisa antiquada e tão pouco económica.
Infelizmente o que vai
acontecer é que se está a criar a cama para que estas questões decisivas
para a nossa identidade e soberania acabem por ser decididas na base de
uma lógica de avanços e recuos, assente no mediatismo. Aliás, é um
pouco o mesmo que acontece em muitas outras áreas da governação. Eu
explico com um exemplo de alguma coisa que pode ocorrer amanhã.
Portugal
tem responsabilidade pelos salvamentos numa parte importante do
Atlântico Norte, resultado da posição das ilhas atlânticas e do grande
espaço geográfico do mar português no coração desse oceano. É uma missão
atribuída às Forças Armadas, em particular à Marinha e à Força Aérea,
que mobiliza uma série de recursos, nomeadamente helicópteros com grande
autonomia de voo, que podem deslocar-se quase até às fronteiras dos
EUA. Nessa parte do Atlântico passa uma parte importante do tráfego
marítimo.
Portugal reivindicou sempre, no quadro das suas
relações internacionais, militares e civis, o controlo desse espaço, não
apenas para cuidar de acidentes, mas também para defrontar ameaças à
segurança e ataques terroristas, considerando que, se for outro país,
seja a Espanha, seja os EUA, a assumir esse controlo, isso significa,
queira-se ou não, um enfraquecimento da soberania nacional numa área
particularmente sensível do território nacional. Mesmo, senhores
economistas da escola governamental, numa área com enorme valor
económico, porque inclui o controlo sobre o mar português e da sua zona
económica exclusiva. Acresce que as fronteiras dessa zona entre a
Madeira e as Canárias estão sujeitas a controvérsia, pelo que nem tudo é
assim tão pacífico.
Não custa imaginar que, com a contínua
deterioração dos meios militares, seja possível alguma coisa correr mal.
Por exemplo, pode haver um acidente na área de nossa responsabilidade e
os meios operacionais, que já estão esticados até ao limite, não terem a
capacidade de garantir o salvamento de pessoas e bens ou um desastre
ecológico qualquer. Vamos admitir, nesse caso, uma mais que provável
condenação, pela imprensa estrangeira, espanhola, britânica, americana,
com maior intensidade conforme a nacionalidade do país cujo barco ou
nacionais sejam as vítimas, da incapacidade portuguesa para assegurar as
suas responsabilidades. Será uma vergonha para a nossa imagem (como a
bancarrota e os PIGS...) e, ou perdemos as nossas prerrogativas de
controlo por incompetência, ou, se o escândalo tiver impacto nacional,
lá vamos comprar apressadamente mais qualquer meio que já devíamos ter
antes e que o corte da troika e dos seus executantes nacionais levaram a perder. Por surtos, como é habitual.
O
mesmo pode acontecer numa disputa com o nosso vizinho espanhol, porque
Deus pode dar nozes a quem não tem dentes, mas sem dentes não se comem
nozes. Não estamos no tempo do Ultimato, nem se vai comprar um navio de
guerra por subscrição nacional, mas talvez - e digo talvez porque nem
disso já tenho a certeza - pode ser que haja um sobressalto nacional.
Mas será tarde mais e vai-se acabar por engolir em seco e assobiar para o
lado. No fundo para que é que servem as Selvagens? Que valor económico
têm?
Se não quiserem Forças Armadas, e as substituírem seja por
uma guarda costeira em vez de uma marinha, ou uma polícia pesada em vez
de um exército, ou uma frota para salvamentos em vez de uma aviação,
podem ter a certeza que tudo isto acontecerá. E bem se pode protestar,
mas não haverá meios para ir buscar portugueses à Guiné, se houver um
golpe de Estado sangrento que ameace os nossos compatriotas lá
residentes, não se pode parar um avião terrorista que resolva atacar
numa visita de um chefe de Estado estrangeiro de relevo, etc., etc.
Podemos
contratar um desses exércitos privados que para aí existem, mas é muito
caro, podemos fazer como fez a Islândia, que entregou aos EUA sua
segurança, mas que não controla o seu espaço aéreo e vê os aviões russos
a passar à vontade, depois de os americanos se irem embora. Poder,
podemos, e vamos mais a caminho disso que outra coisa. Mas continuar
como estamos, um pé dentro e outro fora, é que é pouco saudável. Para
além das tentações corporativas, os militares sabem disso muito bem e
por isso estão, eles também, indignados."
Historiador. Escreve ao sábado
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