"Em média 70% dos alunos arranjam emprego seis meses depois de concluírem um curso profissional. Apesar disso, apenas 40% dos estudantes portugueses optam por esta via. O estigma social à volta de algumas profissões técnicas e a falta de conhecimento da oferta existente estão a fazer de Portugal um dos países europeus onde este ensino tem menor expressão. O Governo quer inverter a tendência.
Entre o discurso oficial e a realidade das escolas profissionais ainda há um mundo de distância. Nuno Crato quer chegar aos 50% de alunos em cursos profissionais até 2020 e está a preparar um reforço da oferta. Quem está nas escolas fala em cortes, desinvestimento e falta de diagnósticos sobre as áreas em que se deve apostar. Mas desengane-se quem acha que os jovens fogem a este ensino: em pouco mais de uma década quase quadruplicaram os estudantes que optam por esta via.
Neste momento, são cerca de 120 mil os alunos dentro da escolaridade obrigatória (até aos 18 anos) que frequentam o ensino profissional, entre cursos vocacionais - para os maiores de 16 que procuram um ensino mais prático e profissionais, que proporcionam formação numa profissão concreta.
Encontrar a motivação
Miguel Félix tem 17 anos e é um dos alunos que frequentam cursos profisisonais. “Passava as aulas a desenhar. Nem ouvia a professora”. Descobriu a animação quando tinha 13 anos. Nessa altura, a escola não o interessava. “Fazia séries de animação e punha na net. Fiquei entusiamado quando percebi que tinha um episódio com 1.200 visualizações no Deviant Art, uma espécie de rede social para mostrar trabalhos de arte”. Quando acabou o 9.º ano, o miúdo que “não sabia o que andava a fazer na escola” inscreveu-se num curso profissional de Animação 2D e 3D. Aos 17 anos, está a criar uma empresa de produção de conteúdos, tem um site de crítica de jogos e filmes e os seus olhos brilham quando fala na escola.
Miguel encontrou o caminho na Escola Digital, uma escola profissional privada em Lisboa, 100% financiada pelo Estado, que garante que as vagas não chegam para todos os que a querem frequentar. “Tinha candidatos suficientes para encher oito turmas, fiz quatro”, conta o director Luís Sebastião, justificando-se com a falta de financiamento. “Somos financiados por turma e de acordo com as candidaturas que são aprovadas pelo Ministério da Educação e Ciência [MEC]”, explica.
Este ano, Luís Sebastião viu-se confrontado com a necessidade de acolher as orientações do Ministério e passar de turmas com 23 alunos para turmas com 30. “Foi preciso fazer obras, para ter salas maiores. E tem sido complicado porque é um ensino prático que requer atenção ao aluno e materiais para todos trabalharem. Tivemos de nos adaptar”.
As candidaturas são seleccionadas tendo em conta as áreas prioritárias de formação definidas todos os anos pelo Ministério para cada região. Ou seja, dá-se prioridade aos cursos com maior empregabilidade. No entanto, há quem considere que ainda há muito por
fazer para adequar a oferta à procura.
fazer para adequar a oferta à procura.
“Temos muitas vezes a percepção de que há um desfasamento entre a oferta e a procura em algumas áreas profissionais porque, muitas vezes, não chega às escolas informação fidedigna sobre as verdadeiras necessidades de formação”, queixa-se o presidente da ANESPO (Associação Nacional de Escolas Profissionais), José Luís Presa. O responsável considera que não há estudos suficientes sobre os cursos que fazem mais falta. “Ou não existem ou, quando alguém faz algum esforço no sentido da sua elaboração e disseminação, são metidos na gaveta”, queixa-se.
Luís Sebastião dá um exemplo concreto: “O curso de Técnico de Gestão de Equipamentos Informáticos tem uma empregabilidade acima dos 75%. Há alunos que ainda não acabaram o curso e já têm ofertas de trabalho. Um deles chegou mesmo a ir para a Google antes de acabar. Mas esta formação não faz parte das que o MEC considera prioritárias”.
José Luís Presa diz que há uma “terrível falta de organização e planeamento” a nível nacional e local. “Houve situações em que as turmas foram aprovadas nas escolas profissionais, mas houve duplicação de oferta nas escolas secundárias públicas, ficando as escolas profissionais sem alunos”.
João Grancho, secretário de Estado do Ensino Básico e Secundário, garante, porém, que o Governo está a reorganizar a rede, “evitando sobreposições de oferta e rentabilizando os recursos existentes”, sempre tendo em conta “o contexto económico e empresarial português”.
Mais 9 mil alunos este ano
Neste momento, o MEC está a definir uma Carta de Equipamentos/Instalações por área de formação que deve ser apresentada em breve. Outra novidade serão as “escolas profissionais de referência empresarial”, que deverão ser criadas por empresas que queiram formar trabalhadores nas suas áreas. Até lá, Grancho acredita que o trabalho feito - que incluiu um reforço da carga horária da componente de estágio nas empresas - já está a dar frutos. “Traduziu-se num acréscimo de cerca de nove mil alunos face ao ano lectivo anterior”.
Muitos destes novos alunos que procuram uma saída no ensino profissional são empurrados pela crise e pela promessa de emprego quase garantido. “São cursos baratos - aqui na escola só pagam as actividades extra - e que permitem uma certificação que dá acesso directo ao mercado de trabalho. Em tempos de crise, isso conta”, admite Luís Sebastião. Mas não se pense que a opção pela via profissional é um último recurso. “Quando vêm para aqui é uma primeira escolha”. Muitos eram alunos que não tinham aproveitamento no ensino regular e que revelam vontade de aprender nos cursos profissionais. “Há pais que me chegam a agradecer, porque nunca viram os filhos a trabalhar desta forma, com um rumo. A diferença é a motivação”, garante Luís Sebastião.
Para entrar, os alunos submetem-se a um teste e a entrevistas. “Temos de seleccionar, porque temos mais oferta que procura. O objectivo não é tanto avaliar competências, mas mais motivações. É importante que estejam motivados e percebam o trabalho que implica tirar estes cursos”.
Paula Canhoto, directora da Profitecla, uma escola de Lisboa especializada nas áreas do Turismo e da Comunicação, sente o mesmo. “Fazemos testes e entrevistamos não só os alunos, mas também os pais. Temos cursos de Hotelaria e Turismo, que têm estágios que implicam trabalhar aos fins-de-semana e à noite. Para isso, é preciso ter alunos motivados e encarregados de educação empenhados em que eles cumpram. É preciso responsabilidade”. Até as aparências contam. “Têm de estar bem apresentados, porque o trabalho deles vai ser quase sempre de contacto com o público e isso é sempre muito importante”.
20% vão para a universidade
No final dos cursos - que dão equivalência ao 12.º ano -, os alunos da área de Turismo têm taxas de empregabilidade na ordem dos 70%. Mas nem todos param de estudar. Quando terminar o curso de Turismo, diz Bárbara Frade, de 18 anos, “a prioridade é o ensino superior”. Bárbara chegou a fazer o 10.º ano de Humanidades, mas estava “cada vez mais desmotivada”. Depois de descobrir por uma amiga os cursos profissionais, reencontrou o prazer de aprender. “A minha mãe sempre me disse que eu não ia conseguir ir para o ensino superior porque não gostava de estudar. Mas as minhas notas mudaram radicalmente. Vou fazer os exames e espero entrar”.
Como qualquer aluno do ensino profissional, quando acabar o curso Bárbara terá direito a uma certificação que lhe permite entrar no mercado de trabalho. No entanto, há a possibilidade de fazer os exames nacionais e prosseguir estudos. Cerca de 20% dos alunos de cursos profissionais acabam por seguir para as universidades e politécnicos.
Manuel Rosa, 18 anos, é colega de Bárbara na Profitecla e quer continuar a estudar, mas só depois de experimentar o mercado de trabalho. “Quero ganhar experiência e fazer um pé-de-meia. Só depois disso é que vou continuar os estudos”. Depois de ter percebido que o ensino regular não era o que queria, Manuel não hesitou em escolher um curso profissional. “Ainda fiz o 10.º ano em Economia, com média de 10. Mas no 2.º período já tinha percebido que não era nada daquilo que eu queria”, conta. O exemplo que teve em casa foi fundamental para a sua escolha. “Tenho três irmãos e o que conseguiu emprego primeiro foi o que tinha um curso profissional”.
Os números dão-lhe razão. Dados da ANESPO mostram que a empregabilidade média dos cursos profissionais ronda os 70% seis meses depois de concluídos os estudos. E um estudo de dois alunos da Nova School of Business and Economics revela que os estudantes que seguiram a via profissional a partir de 1989 “têm uma vantagem salarial face aos que fizeram o percurso geral”. O ganho é mais significativo nos indivíduos que têm apenas até ao 9.º ano, uma vez que para quem fez o 12.º ano a vantagem salarial depende mais da área escolhida.
No caso de Tiago Lima, um aluno de 15 anos do curso de Gestão e Programação de Sistemas Informáticos, os conselhos da família foram determinantes. “Tenho dois familiares na área da informática e falaram-me nas vantagens do ensino profissional”. Tiago está “muito motivado” e satisfeito com a escolha. Acredita que muitos colegas não lhe seguiram os passos por influência dos pais. “Há muita pressão para ficar no ensino regular”. E “pouca informação”, acrescenta a colega Jéssica Afonso, que só depois de chegar ao 12.º ano de Humanidades descobriu o ensino profissional e o curso de Multimédia.
“Há três ou quatro anos, a Escola Digital era convidada para estar em 15 feiras de emprego por ano em escolas públicas. Agora, se forem duas ou três já é muito”, conta o director Luís Sebastião.
A necessidade que as secundárias têm de atrair alunos pode ajudar a explicar o problema. “Temos vários exemplos de alunos que estão inscritos em cursos profissionais e depois desistem porque são 'aconselhados' a desistir, matriculando-se em cursos científico-humanísticos, para não haver problemas com a formação das turmas nas escolas secundárias públicas”, denuncia José Luís Presa.
Um relatório da consultora McKenzie, apresentado pela Comissão Europeia na passada semana, atesta o desconhecimento em relação a esta oferta. Segundo o estudo, 86% dos alunos portugueses consideram não receber informação suficiente sobre as oportunidades de trabalho antes de terminar o secundário.
Segundo a McKenzie, o facto de Portugal ser um dos países com menos alunos no ensino profissional - cerca 40% contra os 53% da Alemanha - tem muito que ver com o “estigma” associado a esta via. O que pode ajudar a perceber por que só 44% dos que gostavam de seguir para estes cursos o faz, apesar de 85% acreditarem que este tipo de educação é mais útil para encontrar emprego.
O problema é que faltam jovens com competências técnicas. O mesmo estudo assegura que três em cada 10 empregadores portugueses afirmam não preencher vagas por não encontrarem candidatos com as habilitações necessárias.
“Há estudos feitos recentemente que dizem que cerca de 30% dos jovens se empregam na área do comércio, mas se analisarmos o número de alunos que saem das escolas com cursos nesta área, no seu conjunto, nem a 15% chegam”, afirma José Luís Presa, que diz que a escassez de recursos humanos nas áreas da mecatrónica e da electrónica é ainda maior. Uma das razões tem que ver com a ausência de diagnóstico das formações que fazem falta, mas também com “a representação social negativa” associada a profissões mais técnicas.
“Uma das áreas com mais saída é a de bagageiro para hotéis, mas tenho muita dificuldade em convencer os alunos a aceitar esses trabalhos”, confessa Paula Canhoto, explicando que muitos só se apercebem do potencial do trabalho depois de experimentarem. “Quando vêem que acabam por receber muito mais do que os colegas de outras áreas graças às gorjetas, mudam de ideias”. Com as distinções que Lisboa tem recebido a nível turístico, esta é uma área onde o emprego é quase garantido. “Estão constantemente a pedir-me guias turísticos. Não há gente formada em número suficiente para as necessidades do mercado”.
Uma das vantagens de quem opta pelo ensino profissional é precisamente o contacto com o mundo das empresas. Todos os cursos profissionais incluem um estágio. No caso da Profitecla, há alunos que têm parte das aulas em hotéis e há até um grupo que está, ao mesmo tempo que tem aulas, a desenvolver um projecto para reabrir o restaurante de um hotel no centro de Lisboa. “A ideia é que eles tenham o maior contacto com a realidade”, explica Paula Canhoto.
Cursos profissionais superiores
A mesma preocupação existe no ensino politécnico, onde há Cursos de Especialização Tecnológica (CET), isto é, formações com a duração de três semestres, que não conferem um grau académico, mas permitem acumular unidades de crédito que podem ser usadas para concluir uma licenciatura. Os CET têm sempre formação em contexto de trabalho e estão ligados a áreas técnicas. “São muito procurados e bem aceites pelas empresas e instituições públicas e privadas”, garante o presidente do CCISP (Conselho Coordenador dos Institutos Superiores Politécnicos), Joaquim Mourato.
No Politécnico de Leiria, este ano houve um aumento de 10% na procura destes cursos técnicos e o seu presidente, Nuno Mangas, acredita que o segredo passa por estar atento às necessidades do mercado. Por isso, este ano abriu um curso de Aquacultura e Pescas em Peniche. “Há cada vez mais empresas a contactar o Politécnico de Leiria a solicitar estudantes para estágios”, assegura. A maior procura foi nas áreas ligadas à tecnologia automóvel, mecânica, informática e turismo.
No Politécnico de Setúbal também se tem sentido “um aumento gradual” da procura de CET, sobretudo naquelas que são as grandes áreas de aposta da escola, a Engenharia e a Tecnologia. O “contacto com o real contexto de trabalho e a criação de redes de contactos” são apontadas como mais-valias destas formações."
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