No presente momento concreto, quando se fala de “autonomia” das escolas, de que é que estamos realmente a falar? A pergunta é legítima, na exacta medida em que é fundamental distinguirmos as palavras dos actos. À primeira vista, não há ninguém — ou quase ninguém, como adiante se verá — que discorde da autonomia, o que, dados os diferentes modos de encarar a escola, não deixa de ser estranho. Estamos perante um suspeito unanimismo, que não é fácil de romper.
Este (aparente) unanimismo só é possível porque, usando todos a mesma palavra, esta encerra no entanto conceitos diferentes e até antagónicos. Para a generalidade dos professores e das escolas, autonomia significa a possibilidade de se verem libertos da teia burocrática e centralizadora do MEC, onde cada passo, mesmo o mais ínfimo, tem de ser superiormente requerido e autorizado. Ou seja, a autonomia é conceptualizada pela negativa. “Eis do que nos queremos ver livres” — mas para fazer o quê?, para nos afirmarmos como?
Mas o MEC, pelos vistos, também adora a autonomia, enche a boca com ela todos os dias.
Então, se assim é, o que é que para o MEC significa a autonomia? Pela sua prática quotidiana, o MEC “autonomiza” as escolas, não libertando-as, mas libertando-se delas, “autonomizando-se”, ele, Ministério, em relação a elas — e não sem antes as mergulhar num colete-de-forças de onde dificilmente sairão. As escolas gozam de autonomia, sim — mas só depois dos cortes orçamentais decididos pelo “quarteto troika+Nuno Crato”, mas só depois do despedimento de milhares de professores, mas só depois da imposição dos megagigaagrupamentos desumanizantes e pedagogicamente ingovernáveis, mas só depois do aumento do número de alunos por turma, mas só depois do desastre para que foi empurrada a educação especial, mas só depois do presente envenenado da nomeação dos instrutores dos processos disciplinares pelos directores, que coloca professores contra professores, etc, etc …
Não há autonomia que resista a tais condicionantes — e o MEC sabe-o perfeitamente. Desprezando em absoluto a educação e o ensino como uma das funções essenciais do Estado, consagrada na Constituição da República, o MEC autonomiza as escolas, autonomizando-se delas, atirando-as para cima de uma coisa difusa a que pomposamente chama “comunidade educativa” e, mais tarde ou mais cedo, para cima dos municípios, num processo que já se iniciou — como se a nossa história fosse a da Noruega ou da Finlândia! Quando é que as pessoas começam a compreender que, neste quadro de autonomia, não é a escola que se liberta do Ministério, fortalecendo-se, mas são o Ministério e o Estado que tudo farão para se libertarem inconstitucionalmente da escola, enfraquecendo-a?
Aliás, a pretexto da autonomia, o papel da escola tem vindo a ser “reforçado” — dizem — com a atribuição de funções que ela não está nem tem de estar estar em condições de exercer. Na televisão fala-se da sida e da sexualidade, e logo aparece alguém, cheio de boa vontade, a reclamar para a escola um papel determinante na solução do problema; mas logo um outro fala da sinistralidade rodoviária, e a escola lá surge como tábua de salvação; e um terceiro lembra-se da tragédia da obesidade nos nossos jovens, e entende logo que a escola não pode passar à margem do problema… Os exemplos seriam infindáveis! Fica-se com a impressão de que o país fora da escola é um deserto, de que não existe no país nenhuma outra instituição, que não a escola, vocacionada para o que quer que seja! Basta de sobrecarregar a escola! Será que, por exemplo, as nossa crianças são todas elas órfãs, não têm pais, não têm família? E os pais e as famílias não desempenham qualquer papel na educação das crianças — ou também eles acham mais fácil atirar os problemas, isto é, os filhos, para cima das escolas? Será esta a famosa escola-a-tempo-inteiro que afinal desejam?
Não existe autonomia que resista a estes outros constrangimentos. Na generalidade, os nossos pais não servem para reforçar a autonomia das escolas, não sabem trabalhar com ela, assumem-se muito mais como seus juízes. Certo é que, com excepção dos profissionais liberais ou dos empresários, os nossos pais não usufruem de condições legais mínimas que lhes permita ir à escola tratar de questões dos seus filhos. E a “crise” que actualmente nos foi imposta não contribui para uma melhoria da situação. Não se está a ver um trabalhador com salário mínimo e contrato precário pedir dispensa de horas ao patrão para se deslocar à escola por causa do seu filho… Sim, porque “dantes” é que era bom. A escola abria-se apenas a alguns, para aqueles com origem socioeconómica tranquila, e assim a escola era feita à sua medida, era uma escola naturalmente sem problemas. Mas agora, particularmente depois do 25-de-Abril, a escola abriu-se a todos, todos entram na escola — e os problemas de todos também lá entram, não podem ficar à porta ou pendurados no bengaleiro. Entram o desemprego, a precariedade, a pobreza envergonhada, mesmo a fome, e o insucesso e a indisciplina (sim, porque o insucesso e a indisciplina entram na escola, não são gerados lá dentro) — e que pode a escola fazer? Sim, porque a pergunta é “que fazer?”, ou, se quisermos, que fazer com a autonomia, ou ainda, que autonomia para se fazer o que não pode deixar de ser feito? (Mas não podemos esquecer que hoje não há mais insucesso ou mais indisciplina do que os que existiam nos anos ’60 do século passado — se tivermos como referência um mesmo universo sociocultural e económico dos alunos). Assim, qual a autonomia desejável, na obediência à Constituição da República? As escolas deveriam possuir um currículo nacional clássico, imposto e definido a nível central pelo MEC, implicando um total de 20 a 25 horas semanais. As nossas crianças e os nossos jovens não podem continuar a suportar a brutalidade das cargas curriculares que agora lhes são impostas! Mas, fora destas horas, as escolas deveriam poder organizar-se de modo a garantirem aos seus alunos condições reais para o sucesso escolar e educativo. Porque não existem duas crianças e dois alunos iguais, todos eles devem ser considerados “especiais” — e devem assim beneficiar de apoios à medida de cada um, ou de cada grupo homogéneo. Porque o drama das nossas escolas não se situa dentro da sala de aula, mas sim no “antes” e no “depois” — que frequentemente é resolvido com “explicações”, fora da escola, pelos pais com maior poder económico. Ora, a escola tem a obrigação de responder a este “antes” e a este “depois”, e tem de se organizar para tal — e, neste quadro, é absolutamente falso que existam professores a mais, o que temos é sistema educativo a menos! É nesta componente nobre e essencial que a autonomia e a criatividade de cada escola se deveriam revelar."
José Calçada
Paredes, Junho de 2012
Não há autonomia que resista a tais condicionantes — e o MEC sabe-o perfeitamente. Desprezando em absoluto a educação e o ensino como uma das funções essenciais do Estado, consagrada na Constituição da República, o MEC autonomiza as escolas, autonomizando-se delas, atirando-as para cima de uma coisa difusa a que pomposamente chama “comunidade educativa” e, mais tarde ou mais cedo, para cima dos municípios, num processo que já se iniciou — como se a nossa história fosse a da Noruega ou da Finlândia! Quando é que as pessoas começam a compreender que, neste quadro de autonomia, não é a escola que se liberta do Ministério, fortalecendo-se, mas são o Ministério e o Estado que tudo farão para se libertarem inconstitucionalmente da escola, enfraquecendo-a?
Aliás, a pretexto da autonomia, o papel da escola tem vindo a ser “reforçado” — dizem — com a atribuição de funções que ela não está nem tem de estar estar em condições de exercer. Na televisão fala-se da sida e da sexualidade, e logo aparece alguém, cheio de boa vontade, a reclamar para a escola um papel determinante na solução do problema; mas logo um outro fala da sinistralidade rodoviária, e a escola lá surge como tábua de salvação; e um terceiro lembra-se da tragédia da obesidade nos nossos jovens, e entende logo que a escola não pode passar à margem do problema… Os exemplos seriam infindáveis! Fica-se com a impressão de que o país fora da escola é um deserto, de que não existe no país nenhuma outra instituição, que não a escola, vocacionada para o que quer que seja! Basta de sobrecarregar a escola! Será que, por exemplo, as nossa crianças são todas elas órfãs, não têm pais, não têm família? E os pais e as famílias não desempenham qualquer papel na educação das crianças — ou também eles acham mais fácil atirar os problemas, isto é, os filhos, para cima das escolas? Será esta a famosa escola-a-tempo-inteiro que afinal desejam?
Não existe autonomia que resista a estes outros constrangimentos. Na generalidade, os nossos pais não servem para reforçar a autonomia das escolas, não sabem trabalhar com ela, assumem-se muito mais como seus juízes. Certo é que, com excepção dos profissionais liberais ou dos empresários, os nossos pais não usufruem de condições legais mínimas que lhes permita ir à escola tratar de questões dos seus filhos. E a “crise” que actualmente nos foi imposta não contribui para uma melhoria da situação. Não se está a ver um trabalhador com salário mínimo e contrato precário pedir dispensa de horas ao patrão para se deslocar à escola por causa do seu filho… Sim, porque “dantes” é que era bom. A escola abria-se apenas a alguns, para aqueles com origem socioeconómica tranquila, e assim a escola era feita à sua medida, era uma escola naturalmente sem problemas. Mas agora, particularmente depois do 25-de-Abril, a escola abriu-se a todos, todos entram na escola — e os problemas de todos também lá entram, não podem ficar à porta ou pendurados no bengaleiro. Entram o desemprego, a precariedade, a pobreza envergonhada, mesmo a fome, e o insucesso e a indisciplina (sim, porque o insucesso e a indisciplina entram na escola, não são gerados lá dentro) — e que pode a escola fazer? Sim, porque a pergunta é “que fazer?”, ou, se quisermos, que fazer com a autonomia, ou ainda, que autonomia para se fazer o que não pode deixar de ser feito? (Mas não podemos esquecer que hoje não há mais insucesso ou mais indisciplina do que os que existiam nos anos ’60 do século passado — se tivermos como referência um mesmo universo sociocultural e económico dos alunos). Assim, qual a autonomia desejável, na obediência à Constituição da República? As escolas deveriam possuir um currículo nacional clássico, imposto e definido a nível central pelo MEC, implicando um total de 20 a 25 horas semanais. As nossas crianças e os nossos jovens não podem continuar a suportar a brutalidade das cargas curriculares que agora lhes são impostas! Mas, fora destas horas, as escolas deveriam poder organizar-se de modo a garantirem aos seus alunos condições reais para o sucesso escolar e educativo. Porque não existem duas crianças e dois alunos iguais, todos eles devem ser considerados “especiais” — e devem assim beneficiar de apoios à medida de cada um, ou de cada grupo homogéneo. Porque o drama das nossas escolas não se situa dentro da sala de aula, mas sim no “antes” e no “depois” — que frequentemente é resolvido com “explicações”, fora da escola, pelos pais com maior poder económico. Ora, a escola tem a obrigação de responder a este “antes” e a este “depois”, e tem de se organizar para tal — e, neste quadro, é absolutamente falso que existam professores a mais, o que temos é sistema educativo a menos! É nesta componente nobre e essencial que a autonomia e a criatividade de cada escola se deveriam revelar."
José Calçada
Paredes, Junho de 2012
'surripiado'... daqui.
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