no público 'online'...
"A primeira razão que
Cardoso apresentou para a sua decisão foi o “mau gosto” das imagens que
compõem o ensaio visual publicado neste número da revista. Da
responsabilidade de Ricardo Campos, da Associação Portuguesa de
Sociologia, esse ensaio é composto por um breve texto, no qual se fala
de uma tendência de repolitização da forma graffiti no actual contexto
social de crise. No fim do texto, o sociólogo expõe imagens de vários graffiti
que existem nas ruas de Lisboa e que satirizam e criticam figuras de
Estado e grandes empresários, de Angela Merkel a Passos Coelho, de
Belmiro de Azevedo a Alexandre Soares dos Santos. Foram estas imagens
que o gosto de Cardoso considerou intoleráveis e são elas que,
entretanto, têm sido reproduzidas na TVI, na RTP, no PÚBLICO ou no Expresso.
Como outros colegas da direcção cessante da Análise Social,
tive oportunidade de explicar a José Luís Cardoso que estava a cometer
um grave erro, prejudicial à imagem do ICS e ao prestígio da revista. E
que o gesto era injustificável. O sociólogo Ricardo Campos estuda graffiti, o que não significa que comungue do conteúdo dos graffiti
que estuda. As imagens que expôs são material empírico que tem
recolhido e analisado nas suas investigações sociológicas.
Responsabilizá-lo pelo conteúdo dos graffiti é tão descabido
como supor que um historiador que edite a correspondência de Salazar é
salazarista. Ou que um outro que estude as representações visuais de
Hitler seja nazi. Os exemplos de ridículo poderiam multiplicar-se.
Entretanto,
a argumentação de Cardoso começou a enredar-se em mais um labirinto de
equívocos. Admitiu que, afinal, o seu problema não era com as imagens – e
que tão-pouco o incomodaria a exposição dos graffiti. E passou
a justificar-se com o facto de a direcção da revista não ter submetido o
trabalho de Campos a avaliação externa. É um argumento não menos frágil
do que o do “gosto”. Como está explicitado nas normas de publicação da
revista, existem determinados conteúdos da mesma que não necessitam de
avaliação externa. São conteúdos que ocupam um espaço menor da revista e
cuja aprovação depende da avaliação editorial feita pela própria
direcção da revista. De resto, esta é uma situação própria de várias
outras revistas académicas. O ensaio visual em questão não tinha de ser
submetido a avaliação externa e nenhum ensaio visual da Análise Social alguma
vez o foi. Será que Cardoso também vai mandar destruir esses números?!?
Enfim, suspeito que as explicações apresentadas por José Luís Cardoso
não convençam sequer o próprio.
O seu acto é injustificável e não é
por eufemisticamente lhe chamar “gestão de conteúdos” – e não censura –
que deixará de o ser. Ele é director do instituto que é proprietário da
revista, não é o director da revista. Estivesse no lugar do director da
revista, o meu colega João Pina-Cabral, e poderia optar por publicar ou
não publicar o ensaio visual em questão. Mas não está e a separação
entre o conselho de gestão do ICS e a direcção da revista é fundamental
para a credibilidade académica de ambos. O que se passou foi um acto de
ingerência numa publicação que deve ser cientificamente imune à gestão
dos interesses do instituto. A separação entre a responsabilidade
editorial e a propriedade da publicação é um princípio sagrado da
liberdade de expressão. A academia, e em particular a universidade
pública, presta contas a este princípio. E nem falo na leviandade de
quem manda destruir revistas impressas com dinheiros públicos.
Finalmente,
quero pedir aos leitores que procurem não confundir a instituição com o
seu actual director. No ICS existem excelentes investigadoras e
investigadores, de doutorandos a catedráticos, bem como funcionários
muito competentes. Cardoso diz ter procurado preservar o “bom nome” do
ICS, mas está a fazer exactamente o contrário, acabando por arrastar com
ele o prestígio da Universidade de Lisboa e das Ciências Sociais
portuguesas. Ainda espero que tenha a lucidez de voltar atrás na sua
decisão. E que os investigadores do ICS saibam ser suficientemente
amigos do seu director para lhe dizerem que errou.
Ao José Luís
Cardoso caberá tirar as consequências do seu erro. Da minha parte, e
enquanto historiador que tem aprendido com os seus trabalhos
científicos, tomo a liberdade de lhe sugerir que a eles passe a dedicar a
totalidade do seu tempo de trabalho. Porque para liderar uma
instituição universitária é preciso estar seguro de que o bom nome dessa
instituição depende sempre, e antes de mais, do respeito pela liberdade
e independência científicas. Quando trabalhei no ICS, tanto no tempo da
presidência de Manuel Villaverde Cabral como na de Jorge Vala, era isso
que se passava."
Director adjunto cessante da Análise Social e professor auxiliar na Universidade Nova de Lisboa
aqui.
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