no observador...
"- “Estou no sítio que estou pelas crianças”, diz Raquel Cabanas,
professora de 1º ciclo, agitada e nervosa. Fala das crianças com paixão e
bate o pé no chão, como se procurasse afastar os problemas.
– “A nova construção social não pede isto”, diz Filipe Jeremias,
responsável pelo colégio privado “Os ERES” que tem a missão de ajudar
Raquel. Repetindo a expressão ansiosa da professora, Filipe diz-lhe, num
tom pedagógico: “Há aí muito recalcamento”.
– “Atendemos à chamada dos pais, comunicamos com eles, mas eles
querem mais do ensino normal. Preciso de paz de espírito para perceber o
que querem de mim. Há uma falha grande de comunicação desde o arranque
do projeto. Tem de haver explicação clara sobre o ensino individual para
existir o desmame. Tem de haver separação do ensino tradicional”, diz
Carla Miguel, professora de 1º ciclo, acabando por se emocionar. “Tenho
receio que o meu trabalho e o meu esforço estejam a ser postos em
causa”, continua.
Raquel Cabanas, 36 anos e Carla Miguel, 34 anos, foram convidadas
pela Câmara Municipal de Idanha-a-Nova para um projeto de ensino que
está a deixar a isolada vila de Monsanto em polvorosa. A Escola Básica
da Relva tinha apenas 11 alunos, tendo sido encerrada pelo Ministério da
Educação no final do ano letivo anterior. As crianças foram
matriculadas na EB de Idanha-a-Nova, a 30 quilómetros de distância da
vila. Os pais ficaram em choque e opuseram-se à decisão. Ainda há poucos
meses a autarquia tinha conduzido obras num edifício municipal onde
também funciona o pré-escolar, com o objetivo de juntar as crianças da
Escola da Relva no mesmo espaço onde estão os mais pequenos e de um dia
para o outro deixou de existir escola básica em Monsanto.
A Câmara Municipal apresentou uma providência cautelar contra o fecho
da escola, aguardando até agora resposta do Tribunal. Os encarregados
de educação procuraram alternativas e encontraram na lei uma solução que
parecia resolver o problema: o ensino individual. Pediram apoio à
Câmara, que pôs o complexo escolar reabilitado à disposição dos pais e
prometeu ajudar, contratando professores e promovendo contactos com
outras iniciativas de ensino livre e individual, como o Colégio Os ERES,
em Leça da Palmeira.
Desde setembro que os 11 alunos têm aulas no complexo escolar de
Monsanto. São acompanhados por duas professoras, pagas pela Câmara
Municipal, de acordo com o PSD de Idanha-a-Nova e um dos pais ouvidos
pelo Observador. O Ministério da Educação diz que as crianças estão em
abandono escolar. A oposição social-democrata fala em ilegalidade, numa
“escola não oficial, uma espécie de escola municipal” e diz que não há
ensino individual. O presidente da autarquia, Armindo Jacinto, diz que
a opção de fazer ensino individual “é dos pais”, que “fizeram uma
declaração de transferência”. Relativamente à questão do abandono
escolar, o autarca diz que, tanto quanto sabe, a questão não se põe, uma
vez que “está a ser aplicado um método de ensino”.
“Afinal a escola tem meninos”
Um grupo de crianças sobe em fila a encosta íngreme de Monsanto. Os
seus gritos invadem as ruas de granito, desertas. Cantam canções de
Natal e queixam-se da subida. Carolina, 6 anos, levanta a cabeça para
cima, suplicante. “Vou chamar o anjo da Guarda para me levar lá acima”. O
destino é o Posto de Turismo, onde os alunos são esperados pelo cheiro
de azeite quente e por uma mesa onde se encontra um alguidar, uma
batedeira elétrica, uma tigela com ovos, dois pacotes de farinha, um
pacote de açúcar, um pequeno pacote de leite, um copo com aguardente e
outro com azeite. Uma mulher de avental, cabelo bem apanhado e desviado
do rosto recebe-os e, de imediato, pede-lhes que lavem bem as mãos e
arregacem as mangas. Depois, diz-lhes que vão fazer argolas mimosas.
A professora Raquel pega num copo medidor e pergunta aos alunos se
este serve para tudo. Bruna, 15 anos, responde: “Só para os líquidos. Os
sólidos é diferente”. Nova pergunta: “Quantos ovos estão aqui?” E todos
respondem em uníssono, prolongando, de forma cantada, o som do a:
“Quatro!”. Raquel aproveita o balanço: “E quantos faltam para a meia
dúzia?”. E de novo o coro: “Dois!”.
As crianças são ensinadas a partir os ovos e todos experimentam
utilizar a batedeira para envolver as claras e as gemas com o açúcar. Em
fila, cada um dos alunos adiciona outro ingrediente. Depois, todos dão
murros na massa, que é distribuída para que possam fazer bonecos.
Carolina não está satisfeita com o processo e volta a queixar-se: “Só
com a forma é que dá”. A professora Carla, que constrói um boneco de
neve de massa, responde-lhe: “Dá com a imaginação. É como a plasticina
que fazemos na sala”.
Atividades como esta incluem-se na modalidade de ensino individual
que estas professoras tentam pôr em prática em Monsanto. Desta forma,
dizem as docentes, as crianças aprendem de forma lúdica. No mesmo grupo
há três crianças no 1º ano, outras tantas no 2º e 3º ano e duas no 4º. O
facto de muitas vezes aprenderem em conjunto permite que as mais novas
lidem com noções com as quais só se iriam confrontar mais à frente, como
é o caso dos pesos e medidas, diz Carla Miguel ao Observador.
As saídas do edifício escolar e as deslocações ao forno comunitário
ou ao lagar ajudam ao envolvimento da escola com a comunidade e dão
outra vida à vila, defendem as professoras. “Num local onde quase não há
crianças, as pessoas dizem: afinal a escola tem meninos”, diz Carla
Miguel.
“Eles vêm mecanizados do ensino normal”
Nenhuma destas professoras tinha tido qualquer experiência com o
ensino individual. Raquel Cabanas trabalhava num ATL (Atividades de
Tempos Livres) em Idanha-a-Nova e Carla Miguel estava desempregada, mas
tinha iniciado, no verão, um programa ocupacional no Jardim-de-Infância
de Idanha. Como já eram trabalhadoras da Câmara foram convidadas para
iniciar este projeto. Quando questionado sobre quem é responsável por
pagar os salários às professoras, Armindo Jacinto, presidente da Câmara,
explica ao Observador que a autarquia recorre à componente de apoio à
família. “A Câmara paga a estas pessoas para dar apoio à família e os
pais têm relação própria e pagam à parte”.
O Observador falou com duas mães, que contaram uma versão diferente.
Célia Antunes, 34 anos, é a representante dos pais na escola de Monsanto
e garantiu ao Observador que são estes que pagam os salários. “Somos
nós [os pais], totalmente. Nada vem da Câmara”. Recusa, no entanto,
revelar o valor em causa, dizendo apenas que “é médio” e que não há
outras despesas como a alimentação e o transporte, asseguradas pela
Câmara. Susana Monteiro, 36 anos, diz que a Câmara fez “um empréstimo”.
“Por enquanto ainda não somos nós a pagar. As professoras eram
empregadas da Câmara.
Para que os pais e as professoras pudessem esclarecer as dúvidas
relativas ao tipo de ensino que seria posto em prática em Monsanto, a
autarquia também fez contactos com responsáveis destes estilos de
educação em todo o país.
No início do projeto, houve uma reunião com uma representante do
Movimento da Escola Livre (MEL), onde foi explicado o que era o ensino
individual e onde foi assegurado aos pais que tudo era legal, diz Carla
Miguel. Os pais preencheram formulários pedindo a transferência dos
filhos da escola de Idanha-a-Nova para a modalidade de ensino
individual. Tanto as professoras como os pais com quem o Observador
falou confirmaram que esses pedidos foram aceites."
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