quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

coisas da educação... fora do sistema...?


no observador...

"- “Estou no sítio que estou pelas crianças”, diz Raquel Cabanas, professora de 1º ciclo, agitada e nervosa. Fala das crianças com paixão e bate o pé no chão, como se procurasse afastar os problemas.

– “A nova construção social não pede isto”, diz Filipe Jeremias, responsável pelo colégio privado “Os ERES” que tem a missão de ajudar Raquel. Repetindo a expressão ansiosa da professora, Filipe diz-lhe, num tom pedagógico: “Há aí muito recalcamento”.

– “Atendemos à chamada dos pais, comunicamos com eles, mas eles querem mais do ensino normal. Preciso de paz de espírito para perceber o que querem de mim. Há uma falha grande de comunicação desde o arranque do projeto. Tem de haver explicação clara sobre o ensino individual para existir o desmame. Tem de haver separação do ensino tradicional”, diz Carla Miguel, professora de 1º ciclo, acabando por se emocionar. “Tenho receio que o meu trabalho e o meu esforço estejam a ser postos em causa”, continua.

Raquel Cabanas, 36 anos e Carla Miguel, 34 anos, foram convidadas pela Câmara Municipal de Idanha-a-Nova para um projeto de ensino que está a deixar a isolada vila de Monsanto em polvorosa. A Escola Básica da Relva tinha apenas 11 alunos, tendo sido encerrada pelo Ministério da Educação no final do ano letivo anterior. As crianças foram matriculadas na EB de Idanha-a-Nova, a 30 quilómetros de distância da vila. Os pais ficaram em choque e opuseram-se à decisão. Ainda há poucos meses a autarquia tinha conduzido obras num edifício municipal onde também funciona o pré-escolar, com o objetivo de juntar as crianças da Escola da Relva no mesmo espaço onde estão os mais pequenos e de um dia para o outro deixou de existir escola básica em Monsanto.

A Câmara Municipal apresentou uma providência cautelar contra o fecho da escola, aguardando até agora resposta do Tribunal. Os encarregados de educação procuraram alternativas e encontraram na lei uma solução que parecia resolver o problema: o ensino individual. Pediram apoio à Câmara, que pôs o complexo escolar reabilitado à disposição dos pais e prometeu ajudar, contratando professores e promovendo contactos com outras iniciativas de ensino livre e individual, como o Colégio Os ERES, em Leça da Palmeira.

Desde setembro que os 11 alunos têm aulas no complexo escolar de Monsanto. São acompanhados por duas professoras, pagas pela Câmara Municipal, de acordo com o PSD de Idanha-a-Nova e um dos pais ouvidos pelo Observador. O Ministério da Educação diz que as crianças estão em abandono escolar. A oposição social-democrata fala em ilegalidade, numa “escola não oficial, uma espécie de escola municipal” e diz que não há ensino individual. O presidente da autarquia, Armindo Jacinto, diz que a opção de fazer ensino individual “é dos pais”, que “fizeram uma declaração de transferência”. Relativamente à questão do abandono escolar, o autarca diz que, tanto quanto sabe, a questão não se põe, uma vez que “está a ser aplicado um método de ensino”.



“Afinal a escola tem meninos”

Um grupo de crianças sobe em fila a encosta íngreme de Monsanto. Os seus gritos invadem as ruas de granito, desertas. Cantam canções de Natal e queixam-se da subida. Carolina, 6 anos, levanta a cabeça para cima, suplicante. “Vou chamar o anjo da Guarda para me levar lá acima”. O destino é o Posto de Turismo, onde os alunos são esperados pelo cheiro de azeite quente e por uma mesa onde se encontra um alguidar, uma batedeira elétrica, uma tigela com ovos, dois pacotes de farinha, um pacote de açúcar, um pequeno pacote de leite, um copo com aguardente e outro com azeite. Uma mulher de avental, cabelo bem apanhado e desviado do rosto recebe-os e, de imediato, pede-lhes que lavem bem as mãos e arregacem as mangas. Depois, diz-lhes que vão fazer argolas mimosas.

A professora Raquel pega num copo medidor e pergunta aos alunos se este serve para tudo. Bruna, 15 anos, responde: “Só para os líquidos. Os sólidos é diferente”. Nova pergunta: “Quantos ovos estão aqui?” E todos respondem em uníssono, prolongando, de forma cantada, o som do a: “Quatro!”. Raquel aproveita o balanço: “E quantos faltam para a meia dúzia?”. E de novo o coro: “Dois!”.

As crianças são ensinadas a partir os ovos e todos experimentam utilizar a batedeira para envolver as claras e as gemas com o açúcar. Em fila, cada um dos alunos adiciona outro ingrediente. Depois, todos dão murros na massa, que é distribuída para que possam fazer bonecos. Carolina não está satisfeita com o processo e volta a queixar-se: “Só com a forma é que dá”. A professora Carla, que constrói um boneco de neve de massa, responde-lhe: “Dá com a imaginação. É como a plasticina que fazemos na sala”.

Atividades como esta incluem-se na modalidade de ensino individual que estas professoras tentam pôr em prática em Monsanto. Desta forma, dizem as docentes, as crianças aprendem de forma lúdica. No mesmo grupo há três crianças no 1º ano, outras tantas no 2º e 3º ano e duas no 4º. O facto de muitas vezes aprenderem em conjunto permite que as mais novas lidem com noções com as quais só se iriam confrontar mais à frente, como é o caso dos pesos e medidas, diz Carla Miguel ao Observador.

As saídas do edifício escolar e as deslocações ao forno comunitário ou ao lagar ajudam ao envolvimento da escola com a comunidade e dão outra vida à vila, defendem as professoras. “Num local onde quase não há crianças, as pessoas dizem: afinal a escola tem meninos”, diz Carla Miguel.



“Eles vêm mecanizados do ensino normal”

Nenhuma destas professoras tinha tido qualquer experiência com o ensino individual. Raquel Cabanas trabalhava num ATL (Atividades de Tempos Livres) em Idanha-a-Nova e Carla Miguel estava desempregada, mas tinha iniciado, no verão, um programa ocupacional no Jardim-de-Infância de Idanha. Como já eram trabalhadoras da Câmara foram convidadas para iniciar este projeto. Quando questionado sobre quem é responsável por pagar os salários às professoras, Armindo Jacinto, presidente da Câmara, explica ao Observador que a autarquia recorre à componente de apoio à família. “A Câmara paga a estas pessoas para dar apoio à família e os pais têm relação própria e pagam à parte”.

O Observador falou com duas mães, que contaram uma versão diferente. Célia Antunes, 34 anos, é a representante dos pais na escola de Monsanto e garantiu ao Observador que são estes que pagam os salários. “Somos nós [os pais], totalmente. Nada vem da Câmara”. Recusa, no entanto, revelar o valor em causa, dizendo apenas que “é médio” e que não há outras despesas como a alimentação e o transporte, asseguradas pela Câmara. Susana Monteiro, 36 anos, diz que a Câmara fez “um empréstimo”. “Por enquanto ainda não somos nós a pagar. As professoras eram empregadas da Câmara.

Para que os pais e as professoras pudessem esclarecer as dúvidas relativas ao tipo de ensino que seria posto em prática em Monsanto, a autarquia também fez contactos com responsáveis destes estilos de educação em todo o país.

No início do projeto, houve uma reunião com uma representante do Movimento da Escola Livre (MEL), onde foi explicado o que era o ensino individual e onde foi assegurado aos pais que tudo era legal, diz Carla Miguel. Os pais preencheram formulários pedindo a transferência dos filhos da escola de Idanha-a-Nova para a modalidade de ensino individual. Tanto as professoras como os pais com quem o Observador falou confirmaram que esses pedidos foram aceites."

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