"Quantos cidadãos terão começado o ano de 2013 com a
impressão de que o governo do seu país, apesar de democraticamente
eleito, e a União Europeia, que já alimentou sonhos de modernidade e
desenvolvimento, diariamente se empenham em fazê-los sentir que estão a
mais? Quantos estarão a sentir que quem decide das suas vidas legisla
apesar deles, e não para eles nem com eles? Quantos acreditaram na
retórica manipuladora da expiação da «culpa» através do «sacrifício» e
descobrem agora que esse poço sem fundo da austeridade sempre traduziu
um profundo desrespeito pela sua inteligência, pelo seu trabalho e pela
sua humanidade, e perpetuamente se transmuta em mais exploração, menos
rendimento disponível, mais desemprego, menos protecção social, mais
acumulação de riqueza no topo, menos Estado social, mais privatizações,
menos serviços públicos e, claro, mais salvamentos de bancos – agora foi
o BANIF, quantos mais virão?
Não fora o simples facto de serem os cidadãos, com o seu trabalho, quem cria essa mesma riqueza que os decisores políticos se comprazem em canalizar, directa ou indirectamente, para engordar fortunas e satisfazer interesses privados, já há muito que teriam passado de mera variável de ajustamento, objecto de todas as desvalorizações, para serem liminarmente abandonados à sua sorte, descartados como qualquer mercadoria já consumida ou sem valor.
Como cidadãos, já estávamos a caminhar para este estatuto cada vez que aceitámos o aumento da exploração, a corrosão dos serviços públicos, as engenharias de concessões e privatizações que deixam o país sem recursos para sustentar o aparelho produtivo e o Estado social. Mas também cada vez que nos deixámos convencer de que o privado faz melhor do que o público, de que a desregulação liberta o desenvolvimento, de que a limitação da riqueza afugenta os ricos, de que a desvalorização social não tem alternativa.
Esta narrativa e esta arquitectura de subalternização do estatuto dos cidadãos terá de ser contrariada no ano que agora começa. Não é tarefa fácil. Desde 2012 que os responsáveis pela austeridade, pela espiral recessiva e pelo desastre social perceberam que os cidadãos são uma maçada. Um «entrave» à governação, tal como a Constituição e a democracia. O aumento da contestação, nas suas múltiplas formas, fez regressar o povo como sujeito histórico e mostrou-lhes que era tempo de juntar algumas cenouras ao discurso do bastão dos «malandros culpados».
Os elogios do ministro das Finanças Vítor Gaspar aos portugueses como o «melhor povo do mundo» ou do primeiro-ministro Pedro Passos Coelho à sua «capacidade de sacrifício» inscrevem-se nesta linha de contrabalançar as políticas de empobrecimento e de miséria com palavras de louvor. Mas talvez estejamos mais perto do que longe do momento em que tais palavras passam a ser simplesmente recebidas como ofensivas, cínicas, insuportáveis. Por quanto tempo poderá alguém como Christine Lagarde, directora-geral do Fundo Monetário Internacional (FMI), continuar a dizer que o que mais a surpreendeu nestes dezoito meses de programa de ajustamento estrutural «foi a determinação colectiva do país no caminho para a recuperação» e que «há um sentimento colectivo de que existe uma saída e que tem de ser feita conjuntamente» [1]?
A degradação rápida da situação social e económica a que vamos assistir nos próximos meses, acompanhada de todos os indicadores que mostrarão o fracasso das políticas em curso (se não as medirmos pelos critérios do enriquecimento dos mais ricos, da acumulação financeira, do desmantelamento do Estado social ou da venda dos activos públicos), aí estarão para alimentar o desespero e a desesperança. Mas também para aprofundar nas comunidades uma ferida particular, causada pelo abandono, desprezo e humilhação a que se dedicam os que deviam trabalhar para defender o interesse público e o bem comum. Nunca se sabe bem como cicatrizam estas feridas, mas não são eternas.
Ninguém pode dizer quanto tempo vai durar este governo, nem se a sua substituição vai ter a ver com um novo chumbo do Tribunal Constitucional a várias normas do Orçamento do Estado ou com a demonstração, trimestre após trimestre, de que a receita austeritária só agrava a espiral recessiva e tem de ser abandonada, renegociando a dívida e as condições impostas pela Troika (Comissão Europeia, Banco Central Europeu e FMI), regulando os mercados, fazendo investimento público, recuperando activos públicos e repensando a política monetária.
Mais cedo ou mais tarde, e cada dia que passa é demasiado tarde, terá de ser feita uma escolha entre remodelação governamental, governo de iniciativa presidencial e eleições antecipadas. Mas só a realização de eleições pode ter a ambição de atacar os dois problemas que estão a matar o regime constitucional e a democracia: o desastre socioeconómico e a absoluta subalternização dos cidadãos. Em relação ao primeiro problema, caberá a quem se apresenta a eleições, mas também a todos os que promovem e participam no debate público, tornar claras as alternativas existentes, sem ter medo de apelar à inteligência e à maturidade do povo para lidar com escolhas que certamente não serão fáceis nem indolores. Quanto ao segundo problema, o da subalternização dos cidadãos, terão de ser eles mesmos a ocupar o espaço que continuamente lhes é negado pelo poder político, económico e mediático.
Costuma-se dizer que a história é escrita pelos dominantes, mas o presente também já o é. A mudança tem de começar aí, no presente, exigindo que não sejam apenas os poderosos a ser ouvidos como vozes legítimas, quer esse poder advenha de poder pessoal ou seja conferido pela pertença a uma instituição. O chamado «caso do burlão Artur Baptista da Silva», que entre outras cometeu a proeza, pasme-se, de pôr o jornal Expresso a ter de provar que não dá a palavra apenas aos que contestam a austeridade, mostrou bem que para furar o espaço mediático com posições que colidem com o statu quo é necessário falar-se a partir de um lugar de poder de algum modo legitimado pelo mesmo statu quo.
Recusando viver num regime sem democracia, sem Constituição, sem Estado social e sem cidadãos, estes não estarão apenas a exigir ser ouvidos, mas também a recusar que os insultem com chantagens pueris ou com argumentos desrespeitadores da inteligência de cada um como os usados por um presidente da República que admite que estamos emersos numa «espiral recessiva» mas recusa a renegociação da dívida – instrumento sem o qual ela não pode ser travada –, dizendo que essa «não é uma opção credível» nem pode ser defendida por «ninguém de bom senso» [2].
No ano que agora começa, o «Basta!» que invadiu as ruas em 2012 e mostrou o crescimento da revolta social vai continuar a recusar um programa de empobrecimento e subdesenvolvimento do país, mas vai traduzir também a rejeição de um programa que nunca perdura para sempre: desprezar os povos, tomá-los por parvos. É este duplo «Basta!» que tem de ser inscrito em qualquer solução governativa futura que seja uma verdadeira mudança.
Não fora o simples facto de serem os cidadãos, com o seu trabalho, quem cria essa mesma riqueza que os decisores políticos se comprazem em canalizar, directa ou indirectamente, para engordar fortunas e satisfazer interesses privados, já há muito que teriam passado de mera variável de ajustamento, objecto de todas as desvalorizações, para serem liminarmente abandonados à sua sorte, descartados como qualquer mercadoria já consumida ou sem valor.
Como cidadãos, já estávamos a caminhar para este estatuto cada vez que aceitámos o aumento da exploração, a corrosão dos serviços públicos, as engenharias de concessões e privatizações que deixam o país sem recursos para sustentar o aparelho produtivo e o Estado social. Mas também cada vez que nos deixámos convencer de que o privado faz melhor do que o público, de que a desregulação liberta o desenvolvimento, de que a limitação da riqueza afugenta os ricos, de que a desvalorização social não tem alternativa.
Esta narrativa e esta arquitectura de subalternização do estatuto dos cidadãos terá de ser contrariada no ano que agora começa. Não é tarefa fácil. Desde 2012 que os responsáveis pela austeridade, pela espiral recessiva e pelo desastre social perceberam que os cidadãos são uma maçada. Um «entrave» à governação, tal como a Constituição e a democracia. O aumento da contestação, nas suas múltiplas formas, fez regressar o povo como sujeito histórico e mostrou-lhes que era tempo de juntar algumas cenouras ao discurso do bastão dos «malandros culpados».
Os elogios do ministro das Finanças Vítor Gaspar aos portugueses como o «melhor povo do mundo» ou do primeiro-ministro Pedro Passos Coelho à sua «capacidade de sacrifício» inscrevem-se nesta linha de contrabalançar as políticas de empobrecimento e de miséria com palavras de louvor. Mas talvez estejamos mais perto do que longe do momento em que tais palavras passam a ser simplesmente recebidas como ofensivas, cínicas, insuportáveis. Por quanto tempo poderá alguém como Christine Lagarde, directora-geral do Fundo Monetário Internacional (FMI), continuar a dizer que o que mais a surpreendeu nestes dezoito meses de programa de ajustamento estrutural «foi a determinação colectiva do país no caminho para a recuperação» e que «há um sentimento colectivo de que existe uma saída e que tem de ser feita conjuntamente» [1]?
A degradação rápida da situação social e económica a que vamos assistir nos próximos meses, acompanhada de todos os indicadores que mostrarão o fracasso das políticas em curso (se não as medirmos pelos critérios do enriquecimento dos mais ricos, da acumulação financeira, do desmantelamento do Estado social ou da venda dos activos públicos), aí estarão para alimentar o desespero e a desesperança. Mas também para aprofundar nas comunidades uma ferida particular, causada pelo abandono, desprezo e humilhação a que se dedicam os que deviam trabalhar para defender o interesse público e o bem comum. Nunca se sabe bem como cicatrizam estas feridas, mas não são eternas.
Ninguém pode dizer quanto tempo vai durar este governo, nem se a sua substituição vai ter a ver com um novo chumbo do Tribunal Constitucional a várias normas do Orçamento do Estado ou com a demonstração, trimestre após trimestre, de que a receita austeritária só agrava a espiral recessiva e tem de ser abandonada, renegociando a dívida e as condições impostas pela Troika (Comissão Europeia, Banco Central Europeu e FMI), regulando os mercados, fazendo investimento público, recuperando activos públicos e repensando a política monetária.
Mais cedo ou mais tarde, e cada dia que passa é demasiado tarde, terá de ser feita uma escolha entre remodelação governamental, governo de iniciativa presidencial e eleições antecipadas. Mas só a realização de eleições pode ter a ambição de atacar os dois problemas que estão a matar o regime constitucional e a democracia: o desastre socioeconómico e a absoluta subalternização dos cidadãos. Em relação ao primeiro problema, caberá a quem se apresenta a eleições, mas também a todos os que promovem e participam no debate público, tornar claras as alternativas existentes, sem ter medo de apelar à inteligência e à maturidade do povo para lidar com escolhas que certamente não serão fáceis nem indolores. Quanto ao segundo problema, o da subalternização dos cidadãos, terão de ser eles mesmos a ocupar o espaço que continuamente lhes é negado pelo poder político, económico e mediático.
Costuma-se dizer que a história é escrita pelos dominantes, mas o presente também já o é. A mudança tem de começar aí, no presente, exigindo que não sejam apenas os poderosos a ser ouvidos como vozes legítimas, quer esse poder advenha de poder pessoal ou seja conferido pela pertença a uma instituição. O chamado «caso do burlão Artur Baptista da Silva», que entre outras cometeu a proeza, pasme-se, de pôr o jornal Expresso a ter de provar que não dá a palavra apenas aos que contestam a austeridade, mostrou bem que para furar o espaço mediático com posições que colidem com o statu quo é necessário falar-se a partir de um lugar de poder de algum modo legitimado pelo mesmo statu quo.
Recusando viver num regime sem democracia, sem Constituição, sem Estado social e sem cidadãos, estes não estarão apenas a exigir ser ouvidos, mas também a recusar que os insultem com chantagens pueris ou com argumentos desrespeitadores da inteligência de cada um como os usados por um presidente da República que admite que estamos emersos numa «espiral recessiva» mas recusa a renegociação da dívida – instrumento sem o qual ela não pode ser travada –, dizendo que essa «não é uma opção credível» nem pode ser defendida por «ninguém de bom senso» [2].
No ano que agora começa, o «Basta!» que invadiu as ruas em 2012 e mostrou o crescimento da revolta social vai continuar a recusar um programa de empobrecimento e subdesenvolvimento do país, mas vai traduzir também a rejeição de um programa que nunca perdura para sempre: desprezar os povos, tomá-los por parvos. É este duplo «Basta!» que tem de ser inscrito em qualquer solução governativa futura que seja uma verdadeira mudança.
Notas
[1] Entrevista ao Expresso, 5 de Janeiro de 2013.
[2] Aníbal Cavaco Silva, «Mensagem de Ano Novo», 1 de Janeiro de 2013, www.presidencia.pt."
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