"Vivem-se tempos
de estupor, esse sentimento que se caracteriza por manter os seres
humanos numa estupefação tal, que os torna incapazes de afastar o mal
que os atinge. A rentrée veio, com a sua litania de banalidades,
reforçar este debilitante sentimento.
Se olharmos com um mínimo de
lucidez para os cinco anos que passaram desde o começo da crise dos
subprime, para os quatro anos que já lá vão desde a falência do Lehman
Brothers, e para os quase dois anos e meio que temos vivido depois da
eclosão da crise grega, o traço que mais fortemente marca todo este
período tremendo é, sem dúvida, o da singular mistura de incapacidade e
de pusilanimidade dos responsáveis políticos e financeiros, e o da
atordoada inação a que ela deu origem.
A tal ponto que parece que o
único objetivo, nos seus múltiplos encontros, declarações, cimeiras,
etc., é o da teimosa negação da realidade, numa cega e estranha
cumplicidade em que, para lá das ideologias, se enroscam todas as
artimanhas de sobrevivência política.
Neste contexto, o dilema
austeridade/crescimento tornou-se num mero cliché mediático, com os
defensores da austeridade a fingirem que ignoram as suas consequências,
enquanto os defensores do crescimento fingem conhecer as suas causas.
É
isto que tem atirado a União Europeia para uma interminável deriva,
entregue à tagarelice mais ou menos oca dos seus dirigentes, que se
comportam como se fossem incapazes de acreditar naquilo que dizem, e de
agir em coerência com o que sabem. É nesta teia que, infelizmente,
François Hollande tem vindo a deixar-se aprisionar, com prejuízo para o
potencial político que representou a sua eleição em maio passado.
Foge-se
constantemente dos problemas, e é por isso que os estribilhos tomam
agora o lugar das ideias. É o que acontece, e de um modo evidente, com
as palavras "federalismo" e "crescimento", usadas mais como se fizessem
parte de uma prece vodu, do que trabalhados como propostas sérias para o
futuro da Europa.
E o tempo passa... o da grande oportunidade do
federalismo parece já ter passado, agudizando o impasse de uma Europa
que assim se vê cada vez mais condenada à alternativa entre a balbúrdia
dos nacionalismos e o diktat do consenso cada vez menos democrático. E
do crescimento só se fala no registo do apelo milagreiro, ninguém parece
capaz de dizer em que é que consistirá, de onde ele virá ou qual será
seu motor.
E muito menos se fala nas causas e consequências de um
crescimento que, se até ao fim do século passado se devia em 70% ao
mundo desenvolvido, hoje caiu para os 30%, invertendo estes números e
deixando para os países ditos emergentes o papel de locomotiva.
Ou
de como é que se vai enfrentar o hiato entre os 135 dólares de salário
médio diário nos países da OCDE e os 12 dólares que se praticam na China
ou na Índia, que ainda dispõem de "bolsas" de centenas de milhões de
seres humanos que vivem com dois dólares por dia!...
É por isso
que Mário Draghi tem hoje de anunciar, ao arrepio do dogma da
austeridade, um qualquer milagre da "multiplicação do dinheiro",
reconhecendo que a única saída é, de momento, mais monetária do que
orçamental. E todos sabem que, apesar de não resolver os problemas de
fundo, uma tal decisão é vital para a Europa - nomeadamente a Espanha e a
Itália - resistir mais algum tempo. E "resistir" é o termo, porque a
agenda europeia se tornou, na forma, no conteúdo e no calendário, numa
agenda de pura sobrevivência, sem qualquer visão de futuro.
Nestas
circunstâncias, a encenada novela do exame da troika à situação
portuguesa não passa de um episódio quase irrelevante. Mas que, apesar
disso, não pode iludir o essencial, que é, por um lado, o fracasso do
Governo nas frentes orçamental e económica e, por outro lado, a
calamidade política de uma incompetência sem paralelo na gestão de
diversos dossiers sensíveis, como recentemente aconteceu com as
fundações e, agora, com a RTP e o serviço público de televisão.
É
sem dúvida o momento de pensar numa ampla remodelação do Governo, já
com demasiados "cadáveres adiados que procriam", para usar a bela
expressão de Pessoa, e sobretudo de se pensar numa reformulação da
estratégia a seguir.
É talvez tempo de se perceber que, para
sairmos de facto desta crise, precisamos de outra compreensão das suas
raízes, das suas características e das suas consequências. A história -
na verdade uma historieta - que geralmente se conta, mais do que
explicar o que aconteceu, procura sobretudo legitimar o que se tem
passado, confortando assim o conformismo e o calculismo dos que gerem
essa herança, seja no poder ou na oposição.
Qualquer alternativa
começa aqui. Infelizmente, ela não consta de nenhuma cartilha já
escrita. Bem pelo contrário, ela terá de ser produzida com trabalho,
análise e ideias novas.
Ela exige, acima de tudo, uma nova lucidez
crítica face aos ardis do financês/economês dominante.
Uma lucidez
que desmonte e desconstrua o que está verdadeiramente em causa, tanto
pelo lado do homo economicus anestesiado pelo vício do consumo, como
pelo da economia "astrológica" que continua a explicar tudo como se na
verdade não tivesse acontecido nada.
Só assim se conseguirá acabar com o
estupor - para a semana veremos como, mais em detalhe."
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