"O discurso do "economês", que é hoje uma parte
importante do discurso do poder, é uma espécie de marxismo pobre e
rudimentar, que acredita a seu modo que a "infraestrutura" condiciona a
"superestrutura", ou seja, que é a "economia" que determina a
"política". Marx ainda falava da "acção recíproca" e, quando teve que
defrontar a questão da arte e da literatura, ainda abriu caminho a uma
autonomia complexa da "superestrutura", mas isso é muito complicado para
mentes simples educadas por manuais escolares que estavam igualmente
impregnados deste marxismo vulgar. Depois, com as modas mediáticas e os
blogues, este marxismo vulgar virou uma vulgata liberal com muita
facilidade.
Vai tudo com muitas aspas, porque a "economia" é aqui
sinónimo de meia dúzia de ideias simples sobre as empresas, mais
preconceitos do que ideias, e a "política" é uma gestão técnica
condicionada pela "economia" que gere rendimentos, subsídios, impostos,
gastos e poupanças, e cujo valor é "libertar" a "economia" das suas
baias na Constituição, nas leis, nos sindicatos, nos "direitos
adquiridos", nas "ideias antiquadas", no "Portugal do passado" que
precisa de ser desmantelado por um "projecto de futuro" com ajuda de
muita "coragem" autoproclamada e do memorando salvífico da troika.
Parece um programa de uma "jota", e é um programa de uma "jota": ideias
feitas, retórica grandiloquente, palavras cheias de "projecto
geracional", de "Portugal de futuro", de "amanhãs que cantam" em versão
reaccionária. A isto soma-se alguma presunção adâmica e um milenarismo
profético - "estamos a mudar Portugal" - que, se tudo não estivesse já
tão gasto e mole, mataria de ridículo quem o enunciasse.
Não se
pode pois esperar destas pessoas que saiam do conforto das suas
abstracções escolares e juvenis, para o mundo que não cabe num qualquer
"trabalho de casa". É por isso que o marxismo vulgar, que, sem saberem,
lhes molda o pensamento, os faz falar da crise e da pobreza de forma
meramente "infraestrutural": pobreza é fome, é não ter casa, é dormir na
rua, é tudo aquilo que exige assistência. A pobreza para eles é apenas
grande escassez material e remete para um universo assistencialista, com
imagens de sopa dos pobres modernizadas, de IPSS que dão pão, roupa e
cobertores, da benemerência severa e moralizadora do Estado apenas para
os "mais pobres e necessitados". Tudo o resto é perdulário.
Saliente-se
que esta forma de ver a pobreza não é muito diferente da que aparece
nas reportagens televisivas, porque o universo de experiência e
mentalidade de muitos políticos não difere do dos jornalistas. Andaram
30 anos sem ver um pobre, e agora que se fala deles procuram-no com a
força do estereótipo. Um pobre, acham eles, é pouco mais do que um
mendigo que não pede, mas que se pode perceber pelo modo, tom, face,
roupa, que é pobre. Depois há todo um conjunto de reportagens sobre a
"pobreza envergonhada", mas elas são casuísticas e por definição feitas
com quem não "se envergonha" da sua pobreza. Na pobreza procuram o
espectáculo mediático, nada mais.
Estes pobres do estereótipo
aliam a sua pobreza a serem humildes e amochados: não protestam,
agradecem. Os pobres que aparecem no imaginário discursivo dos políticos
e de jornalistas nunca são os pobres perigosos, não vivem em Setúbal,
nem no Cerco do Porto, porque nesses a condição de perigosos oculta a de
pobres e estão incluídos numa categoria particular, a dos que não
querem trabalhar, ou que são subsídio-dependentes, ou drogados e
traficantes, mais as suas famílias, ou que são grupos criminosos oriundo
de minorias de que não se pode falar, como os ciganos ou os negros dos
subúrbios. Não é que não haja alguma verdade nestas caraterizações, mas
elas são mais um ecrã de ocultação do que um conhecimento da realidade.
O
marxismo vulgar e rudimentar desta visão da pobreza encontra-se na sua
descrição assente apenas nos sinais de miséria evidente, acantonando a
pobreza em segmentos da população que de há muito vivem na miséria, por
causas anteriores à crise actual. Estes pobres, muitos e demais, mas
mesmo assim poucos no balanço geral dos dias de hoje, são usados para
ocultar os que estão a empobrecer, os "novos pobres", quer porque só
agora é que são pobres, ou porque são pobres de maneira diferente. Uma
imagem excessiva da pobreza, dos que nada têm, serve para evitar falar
do empobrecimento, dos que, para o poder, têm apenas "problemas" a que
"sobreviverão". O Governo cuida dos primeiros, os outros que "aguentem".
Ora,
é o empobrecimento que caracteriza os tempos de hoje, é o
empobrecimento o principal efeito social da crise, e, para o perceber,
não serve a visão dos que já estão na miséria, até porque não é entre
eles que a crise faz mais estragos. É que os que já estavam na pobreza e
na miséria não são os mais atingidos pela crise, mas os que tinham dela
escapada nas últimas décadas. O Governo e o discurso do poder usa os
muito pobres e alguma protecção que têm tido face à crise como sinal de
justiça social, ao mesmo tempo que ignora, fecha os olhos, não faz nada,
e fustiga com o moralismo do "viver acima das suas posses" os que estão
a empobrecer. Fá-lo de uma maneira perversa, colocando muito abaixo a
fasquia dos que para o discurso governamental são "quase ricos", ou
seja, um alvo de "ajustamento".
O desdém pela "classe média" vem
deste moralismo punitivo sobre os portugueses que melhoraram a sua
condição desde o 25 de Abril, fossem operários ou filhos de operários,
camponeses ou filhos de camponeses, comerciantes ou filhos de
comerciantes, funcionários ou filhos de funcionários. Muitos fizeram uns
cursos que não valem nada para serem doutores, mas pela primeira vez na
esmagadora maioria das famílias portugueses havia estudantes
universitários, muitos foram à República Dominicana ou a Cuba em
programas de férias baratas, fazer patetices a crédito, muitos compraram
sofás e plasmas e vários telemóveis, mas, tiremos o folclore, o kitsch do gosto, e o que fica é uma real melhoria da vida de muitos portugueses.
O ataque à classe média é um remake do ódio à "burguesia", quer na versão esquerdista, quer na visão direitista, a que tinha, por exemplo, O Independente, que
adorava a "velha riqueza" e escarnecia dos que tinham "peúgas brancas",
ou, como Macário Correia, tinham pais pobres e isso "via-se". Como
sempre acontece, os melhores intérpretes desta sanha são eles próprios
típicos membros e representantes dos grupos que escarnecem, falsos
senhoritos com pretensões monárquicas, pequeno-burgueses que acham que,
como falam o telefone com Ricardo Salgado, estão noutro escalão social,
gente que gostava mesmo de ir a Marbella, mas hoje faz de conta que
nunca fez nada disso. Os caminhos do Senhor são de facto tortuosos.
A
mensagem do "Pedro e da Laura" no Facebook, um casal que resolveu
falar-nos no Natal com uma proximidade forçada que incomoda, é um
exemplo típico deste marxismo vulgar da "infraestrutura". A pobreza é
não ter "na Consoada os pratos que se habituaram", em vez de não ter
emprego; é "não poderem dar aos filhos um simples presente", em vez de
estarem deprimidos por terem que em Janeiro despedir os seus empregados
amigos de sempre; é "não conseguiram ter a família toda à mesa", em vez
de terem vergonha por não poderem pagar o que devem.
A todos eles
o "Pedro e a Laura" aconselham que não tenham "pesar", por estarem
falidos, ou desempregados, ou endividados, ou terem perdido a casa, ou
não terem dinheiro para a renda, ou terem que dizer ao filho que não há
dinheiro para continuar a estudar, ou que já não podem mais ajudar os
pais reformados, ou por estarem tão zangados com a vida que todos à
volta pagam um preço elevado em violência verbal e não só. O "Pedro e a
Laura" pedem-lhes para terem "orgulho" na sua nova condição de pobres
sem futuro e destino, porque, ao tirarem os filhos da escola, ao
perderem o emprego, ao caírem na condição de párias sociais, porque não
podem pagar ao fisco, ao perderem todos os seus bens, estão a garantir
"que os nossos filhos tenham no futuro um Natal melhor".
Não,
"Pedro e Laura", na mesa de Natal de muitos portugueses o que preocupa
não é a falta de rabanadas, nem brinquedos, nem pessoas, mas sim o facto
de lá estar sentado o medo, a indignidade, a vergonha e o desespero,
coisas que não vêm em estatística nenhuma. E isso não garante futuro
nenhum que valha a pena viver, nem aos pais, nem aos filhos, nem aos
netos.
(Versão do Público de 29 de Dezembro de 2012.) "
aqui.
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