no observador...
"Segunda-feira, dia de início das aulas, a certa altura levantei a
cabeça do computador e olhei para a parede onde estão as televisões. Que
susto: Mário Nogueira em duplicado, em dois dos canais de notícias.
Felizmente os aparelhos estavam sem som.
Depois interroguei-me: mas porque é que, num dia em que o foco deviam
ser as expectativas de quem inicia, ou reinicia, as aulas, quem está
por todo o lado é um sindicalista que há décadas não entra numa sala de
aulas a não ser à frente de um piquete de greve? A resposta é simples:
porque o nosso sistema educativo é, em muitos aspectos, mais fruto dos
mários nogueiras deste país do que de muitos e sucessivos ministros da
Educação. A forma como este ano lectivo voltou a abrir é uma boa
ilustração deste paradoxo.
Perguntam-me porque é que, todos os anos, o arranque do ano escolar é
sempre um drama. Porque é que faltam sempre professores. Porque é que
tantas famílias só em cima da hora conhecem horários e regras. Porque é
que há sempre protestos, manifestações, escolas fechadas a cadeado e por
aí adiante. A resposta habitual remete para a incompetência do
Ministério (uma incompetência historicamente comprovada, reconheça-se).
Quem não gostar do ministro de turno, acrescentará que a culpa é dele.
Quem preferir o discurso ortodoxo dos sindicalistas, acrescentará que é
por se estar a desinvestir da “escola pública”.
A verdade é outra: as dificuldades, maiores ou menores, que há todos
os anos por altura da abertura do ano escolar são uma consequência
directa do gigantismo paquidérmico do Ministério da Educação, do seu
centralismo e da sua obsessão monopolista. É também uma consequência de o
foco das suas políticas ser há muitos anos os professores, as suas
carreiras e os seus direitos, e não os alunos e as suas famílias.
Basta olhar para o mastodonte. O Ministério da Educação não é só a
maior “empresa” portuguesa, com mais de 150 mil funcionários e uma
burocracia que vomita directivas sobre directivas. O ME é também uma
empresa com milhares de locais de trabalho diferentes, com necessidades
diferentes, mas que está capturado por interesses sindicais que o
obrigam a tratar todos os funcionários e todos os candidatos a
funcionários de forma uniforme e centralizada.
O nosso ministério é fruto de uma utopia estalinista – por muito
estranho que possa parecer juntar utopia e estalinismo. A utopia é a de
tratar todos os professores por igual, à ordem dos sindicatos. O
estalinismo resulta da única forma de o conseguir: centralizando tudo. O
sistema de colocação de professores leva estas políticas ao paroxismo.
Todos estarão recordados da crise das colocações em 2004. Nesse ano o
sistema bloqueou e não havia forma de distribuir os professores pelas
escolas. Mais uma vez, a culpa era da incompetência, talvez do
computador. Poucos sabem com foi o problema resolvido: não cumprindo a
lei. Eu explico. Nesse ano, após uma negociação entre a equipa de David
Justino e os sindicatos, o sistema de colocação de professores passou a
ser totalmente centralizado: todas vagas abriam ao mesmo tempo, todos os
professores concorriam ao mesmo tempo, tanto os que queriam mudar de
escola, como os que queriam apenas arranjar uma escola. Para cada lugar
em aberto, era preciso ordenar os milhares de candidatos. Quando um
professor da escola A conseguia lugar na escola B, abria um lugar na
escola A que antes não estava a concurso. Era então necessário refazer
todos os ordenamentos, vezes e vezes a fio. O computador não aguentou –
nenhum aguentaria – pelo que fez-se um pequeno truque: para esses
lugares não se recalculava tudo. Não era isso que dizia a lei, mas era
isso que impunha a realidade. O problema lá se resolveu, desta forma
algo kafkiana.
Dez anos depois voltamos a ter problemas com as colocações. Porquê?
Porque o Ministério voltou a aceitar na negociação com os sindicatos a
centralização de todas as colocações, agora para aquele grupo de escolas
que pacientemente, lentamente, tinham vindo a conseguir alguma
autonomia. É um absurdo: se as escolas têm autonomia, deviam poder
escolher os seus professores de acordo com as suas necessidades e
critérios. Mas é uma realidade: a lógica sindical é que exista um único
patrão, a burocracia centralizada da 5 de Outubro, não as vontades
descentralizadas das escolas, das suas equipas, das famílias cujas
escolhas deviam respeitar.
A cereja em cima do bolo foi fazerem estas colocações seguindo uma fórmula que não respeita o que está escrito na lei,
como demonstrámos aqui no Observador. Mas se esse comportamento mostra o
nível de autismo do Ministério, não é nele que está o problema: o
problema está em termos o sistema educativo mais centralizado, mais
burocratizado e mais dependente das negociações com os sindicatos do
Hemisfério Ocidental.
Num sistema educativo centrado nos alunos, as suas famílias
pressionariam as escolas para ter os melhores professores e teriam a
liberdade de escolher outra escola quando isso não acontecesse – escola
pública ou mesmo escola privada. No nosso sistema a prioridade não é dar
aos alunos o professor que melhor se adapta às suas necessidades, é dar
aos professores a escola que está mais de acordo com as suas
conveniências. E a perversidade de tudo isto reflecte-se no facto de
acharmos que temos professores satisfeitos com os seus empregos é sinal
de que temos boas escolas e boas aprendizagens, quando isso está longe
de ser verdade. Ou é mesmo mentira.
Basta pensar em duas outras falácias sindicais adoptadas pelo
discurso dominante: a de que com mais professores e com turmas mais
pequenas teremos melhor educação. Ao analisar o mais recente relatório
da OCDE Education At a Glance, a revista The Economist mostra como isso é falso.
Mais: mostra como, apesar da evolução dos últimos anos, o sistema
português continua a ser um modelo de ineficiência. Não é na remuneração
dos professores ou na dimensão das turmas que reside o problema
português: é em pensar-se que tudo se resolve a partir da 5 de Outubro, é
em aceitar a chantagem sindical, é em não devolver a palavra às
famílias, que deveriam poder “votar com os pés”, trocando os seus filhos
de escola livremente em função dos resultados obtidos.
Mais: uma das tragédias destes nossos tempos é vermos como um
ministro que chegou a falar em “implodir a 5 de Outubro” acaba também
ele prisioneiro desta máquina, desta lógica e, em última análise,
prisioneiro de Mário Nogueira. Ele, e todos quantos vierem depois dele
enquanto esta lógica não for alterada, vão continuar a ter insónias a
cada abertura do ano lectivo, como meros CEOs de uma empresa tão
gargantuesca como ingerível e ingovernável."
aqui.
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