"Como estaria a educação nacional se tivéssemos um
curriculum coerente, de alto a baixo? E se o modelo de gestão das
escolas atraísse os melhores? Que teria acontecido se a política
educativa privilegiasse a cooperação, que une, em detrimento da
competição, que divide? E se os professores fossem respeitados, que não
vilipendiados? O exercício dicotómico que esbocei prolongar-se-ia
longamente, opondo o que é ao que poderia ser. Mas porque não aconteceu
cada metade de cada pergunta, os putativos resultados permanecerão no
campo da dialéctica. Diferente é o que está apurado e passou a factual. É
por isso que o relatório do FMI está mal feito. Nesta crónica, que é
uma nota para Moedas, apontarei alguns dos muitos erros que tornam mau
aquilo que Moedas diz que é bom. E porque nem eles, técnicos, nem ele,
político, podem ignorar a verdade, concluirei dizendo que uns e outro
foram desonestos. Eles, intelectualmente. Ele, politicamente.
Diz o relatório, a abrir (p.58), que o sistema de educação
em Portugal perde por comparação com os demais países da Europa, no que
toca à relação entre os custos, por referência ao PIB, e os resultados. O
relatório diz que gastámos, em 2010, 6,2 por cento do PIB. Está errado.
Gastámos cinco, inferior à média da UE. Mas, porquê 2010? Depois de
tanta avaliação e tantas missões, estes mafarricos não conhecem o valor
actual, que se cifrará por volta dos 3,8 por cento? A afirmação é falsa e
particularmente grave, por coexistir com a recente divulgação dos
resultados de dois dos mais credíveis instrumentos de notação dos
sistemas de educação: o TIMMS (Trends in International Mathematics and
Science Study) e o PIRLS (Progress in International Reading Literacy
Study). Como, aliás, referi no meu último artigo, Portugal foi o país
que mais progrediu no ensino da Matemática e o segundo que melhores
resultados obteve no que toca às ciências. Que mundo observam estes
peritos? Linhas à frente, afirmam que nos dois últimos anos o Governo
melhorou a avaliação dos professores. Saberão que nesse tempo a coisa
não mexeu, simplesmente hibernou?
Afirma o relatório (p. 61) que é evidente que o custo por
aluno nas escolas privadas é inferior ao das públicas. Cita os dois
estudos recentemente divulgados, o do Tribunal de Contas e o do grupo de
trabalho designado pelo MEC. Mas só utiliza as conclusões do primeiro,
aliás com validade condicionada pela própria autoria. Diligentemente,
manhosamente, como se os colonizados fossem estúpidos e não simples
vítimas de meliantes da mesma ideologia, o relatório escamoteia as
conclusões do segundo estudo. Porquê? Porque essas conclusões dizem que
80 por cento das turmas financiadas pelo Estado ao privado têm um custo
superior às públicas, de cerca de 15 mil euros. Porque, de outro modo,
não poderiam sugerir à privatização do ensino. Demasiado baixo. Mesmo má
moeda.
Recomenda o relatório (p. 63) o aumento das propinas no
ensino superior. Mas mostra a realidade que os valores cobrados já são
dos mais elevados da Europa, apesar de termos um rendimento per capita
dos mais baixos e a carga de impostos mais alta. Dado o tom de
sofisticação analítica que 24 quadros, cinco tabelas e duas caixas
emprestam ao documento, seria de esperar um quadro comparativo com os
valores cobrados no espaço Europeu. Como convém a recomendações
pré-ordenadas, o documento é aí omisso. Como estamos a ver, a ocultação
cirúrgica e a distorção mascarada de tecnicidade são figuras de estilo
do relatório.
Exemplos similares podem ser abundantemente colhidos se
deslocarmos a análise para as áreas da saúde ou segurança social e
evidenciam que o relatório não conclui como corolário de uma exposição
sequencial de factos. Antes, manipula números para forçar um
preconceito, qual seja o de apontar o Estado social como o responsável
pela crise. E não é. As despesas sociais pesam 19 por cento no PIB
português, enquanto a média da zona Euro se cifra nos 21 por cento. A
crise resulta da acumulação de erros políticos, nossos e da Europa. Só
se resolve à escala transnacional, com crescimento económico. Se este
relatório colhesse crédito, os países escandinavos seriam miragem. E não
são. Existem.
Sem negar a importância dos dados quantitativos, temos que
ter bem presente que a realidade, particularmente nas áreas sociais, não
é redutível à simples linguagem numérica. Porém, quando
intencionalmente distorcemos a realidade e por via da manipulação dos
números, ocultando aqui, distorcendo ali, pretendemos modificar a
percepção que os outros têm dela, resvalamos para o campo da canalhice.
Em tempo de protectorado humilhante, importa redobrar a atenção cívica
aos canalhas e aos colaboracionistas."
aqui.
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