"Talvez custe compreender aos leitores com menos de 40 anos porque
(como tudo) esta marca “democratizou-se” e, verdadeiras ou compradas na
feira, estão ao alcance de quase toda a gente. E nada me move contra a
marca, que fique claro! Mas façam um exercício de imaginação e tentem
situar-se nos anos 60 do século passado.
Foi uma experiência pessoal quando andava no Liceu Pedro Nunes (teria
cerca de 11 ou 12 anos). Um grupo de alunos do liceu – se algum deles
ainda se lembrar do facto espero que se ria, porque será um bom sinal –
resolveu formar um clube que se chamava Clube dos Meninos Que Usam
Camisa Lacoste (só o nome e a menção a “meninos” já é ridícula).
Esclareça-se que estas camisas eram das primeiras “de marca” e o seu
preço proibitivo. Daí a escolha deste ícone para critério de selecção
para entrada no “clube” desses pequenos pseudo machos alfa.
À noite fui ter com o meu pai e pedi--lhe que me comprasse uma camisa
Lacoste, mas obviamente nunca mencionei os verdadeiros motivos. O meu
pai, que tinha um grande sentido ético e o culto do rigor e da justiça,
tentou averiguar do meu interesse súbito por tal peça de vestuário.
Esforcei--me quanto pude: “são óptimas”, “são giras”, “toda a gente
tem”.
Não foram razões suficientemente boas. Parco de argumentos, descaí-me
e contei a verdade. O clube! A resposta dele foi taxativa: “Posso-lhe
comprar a camisa, mas nunca por causa de um clube assim. Dê-me uma razão
lógica e penso no assunto. Se não, pode esquecer a camisa. E quanto ao
clube, sugiro que forme, já amanhã, o Clube dos Meninos Cujos Pais não
Vão Comprar Uma Camisa Lacoste.”
Engoli e no dia seguinte, para meu vexame, passei a pertencer a uma
minoria social. Mas vi, com o breve passar do tempo, que as razões
frívolas e elitistas da criação deste clube eram tão ridículas como
patetas, tão absurdas como a sua duração efémera: o clube extinguiu-se
passada uma semana.
Agradeço profundamente ao meu pai não me ter comprado a camisa. O que
me ensinou foi a convicção com que defendeu as suas ideias e valores,
não os hipotecando (e ensinando-me a não capitular) perante modas,
ditames pessoais ou lógicas acéfalas de grupo.
Hoje podemos aplicar este episódio a todo o tipo de coisas: consolas,
tablets, iPhones, iPads e “Ai-de-nós”. A exigência da moda não se faz
apenas na estética – o que já é, do meu ponto de vista, um pouco
esdrúxulo porque aplicado a um aspecto da vida que é totalmente
subjectivo –, mas também a bens, ídolos, costumes, hábitos e
pensamentos. A irracionalidade da carneirada substitui em muitos casos o
livre pensamento, uma ideia que terá começado em Thomas More e Voltaire
e defende o primado da ciência, da lógica e da razão sobre a tradição, a
autoridade arbitrária e não eleita e o dogma.
Basta ver alguns programas da televisão generalista ou comprar
algumas revistas e jornais para se poder ver, ouvir e ler o que é a
crítica e o desprezo relativamente aos que não seguem um qualquer
Diktat, definido sem regras e sem causas, por alguém que “é conhecido
porque aparece e aparece porque é conhecido”.
Sempre existiu frivolidade nas sociedades e a superficialidade pode
até ser uma parcela de uma vivência feliz e saudável, como tubo de
escape para o stresse e a realidade das coisas importantes. Todavia,
quando para lá da cortina de fumo nada mais há, quando a crosta não
encerra nenhum miolo, quando a mera cópia do que “todos dizem” ou “toda a
gente faz” é razão suficiente para moldar os nossos comportamentos,
muito mal estaremos enquanto cidadãos livres, capazes, interrogativos,
reflexivos e pessoas únicas, irrepetíveis e insubstituíveis.
O meu pai não me comprou a camisa Lacoste. Podia tê-lo feito e
simultaneamente calar e comprar um filho que não queria fazer de fraco…
Deu -me, em troca, uma lição de vida e de coerência e mostrou que
fraqueza era ter aderido por demissão a uma ideia estúpida.
Obrigado,
pai!"
no i em linha... aqui.
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