São seis e trinta da manhã aqui e oito e trinta da manhã no Quénia e a vida em Garissa terá posto o pé fora da porta há duas horas.
Daqui a doze, às seis e meia da tarde de lá, quatro e meia da tarde de
cá, a vida voltará esconder-se em casa, porque desce o recolher
obrigatório sobre a cidade que percebeu que a morte usa AK-47 e explosivos à cintura.
É que a vida em Garissa
tem as horas contadas desde as cinco e trinta da manhã de 2 de abril:
um grupo de tipos do Al-Shabaab entrou na Universidade de Garissa e
matou 148 pessoas (142 estudantes, 3 soldados e 3 polícias) em nome
da sua religião e contra a religião alheia. Quatro desses terroristas
foram mortos e os seus corpos expostos à multidão em carrinhas pick-up - um deles era um rapaz brilhante, filho de um dirigente político queniano; outros cinco foram detidos e há ainda um último que tem a cabeça a prémio.
Numa versão dispensável da teoria do karma, o presidente Uhuru Kenyatta engoliu as críticas feitas na véspera ao Reino Unido
e à Austrália, por porem alertas à segurança nos vistos. Chamou-lhes
“colonialistas” e disse-lhes para verem o que era a vida no Quénia –
leio na Newsweek que há uma lei que proíbe os media quenianos de passarem imagens que instiguem o “medo” no público. Pior - Garissa era tido como um lugar seguro, por estar fortificado e a 200 quilómetros da Somália.
Sucede que os países têm fronteiras que a violência não tem. E, na Síria, o Estado Islâmico já controla 90% do campo de refugiados de Yarmourk, onde vivem palestinianos a oito quilómetros de Damasco. A situação é dramática – “uma afronta à humanidade”, diz a ONU - e já pôs o exército sírio lado a lado com milícias da Palestina para combater os radicais islâmicos. Há pelos menos 18 mil pessoas dentro de Yarmourk.
E no Iraque (lembra-se do que lhe disse sobre fronteiras?) há mais de 2 mil anos de história em Hatra que continuam a ser apagados à marretada e a tiros de kalashnikov pelo Estado Islâmico.
Coluna a coluna, estátua a estátua, pedra a pedra, vemos um pedaço da
humanidade reduzido a pó – e depois a nada. E tudo o que fica são 42
segundos de imagens tiradas por um drone.
OUTRAS NOTÍCIAS
Sampaio da Nóvoa ainda não se anunciou ao português mas já fez alguma gente feliz – e outra tanta infeliz. Marques Mendes, por exemplo, diz que o candidato-que-ainda-não-é-candidato é perfeito para direitista ver e que Marcelo lhe chamará um figo. Ou um folar, vá, porque é Páscoa e uma metáfora cai sempre bem. O que cai mal a Sérgio Sousa Pinto é a “demagogia” de quem “agradece a Deus a graça de ser pobre”, duas de três ou quatro coisas que o deputado do PS vê em Sampaio da Nova – e nenhuma delas é boa. E bom, bom, para João Torres, líder dos jovens socialistas, era ver António Guterres a chegar-se à frente,
coisa que não ata nem desata e deixa a esquerda num nó. E à direita os
laços parecem lassos e o comentador favorito dos portugueses já mede
palavras. E adversários: “Houve uma minimização da candidatura de Sampaio da Nóvoa.”
Já Yanis Varoufakis não tem mãos a medir – na quinta-feira há €458 milhões que têm de ser entregues – e voou ontem para Washington para uma conversa informal com Christine Lagarde. Ele gosta dela e ela gosta dos gregos, como se pode ver aqui,
e todo o charme de Varoufakis será pouco para convencer o FMI (e os
americanos do Departamento do Tesouro com quem se reúne hoje) a
pressionarem os Europeus nas contas e nos cortes que exigem.
Dos cortes para o racionamento porque o Estado da Califórnia vive uma seca sem precedentes e o governador Jerry Brown ordenou que o uso da água baixe 25%. Sem neve no inverno – e ela foi procurada na Sierra Nevada – os depósitos ficam vazios. Tal como os argumentos de quem ataca o aquecimento global.
E como vivemos na globalização, que tal esta história do "Sunday Times": Michael Bloomberg, antigo mayor de Nova Iorque, quer cruzar o Atlântico e tornar-se mayor de Londres. Diz que preenche os requisitos: foi casado com uma inglesa, já jogou pólo com o príncipe Harry - e um dia partilhou um cachorro quente com David Cameron.
Aconteceu em 2010 em Nova Iorque, numa hora como qualquer outra para uma dentada na dieta, a não ser que nos chamemos Cristiano Ronaldo e consigamos marcar cinco golos à hora do brunch. Começou às 11h, o Real Madrid saiu de papo cheio e o Granada encheu o saco num jogo à hóquei em patins – 9 a 1.
FRASES
"Que uma oração incessante suba de todos os homens de
boa vontade para os que perderam a vida - penso particularmente nos
jovens que foram mortos na quinta-feira, na Universidade de Garissa, no
Quénia." Papa Francisco, para os que partiram, na mensagem pascal
“Que bom Cristão seria capaz de dizer a uma mulher de 85 anos que não
pode ter tratamento para o cancro por não ter dinheiro, enquanto [o
país] gasta milhões em ajudas externas e permite aos estrangeiros que
entrem na Grã-Bretanha para serem submetidos a testes HIV e terem
direito a medicamentos que custam 20 mil libras por ano?” Nigel ‘eu-não-acabei-de-dizer-isto’ Farage, líder do UKIP, em entrevista à Sky News. Há um ano, Farage viu Cristo.
“Esta é uma oportunidade única. É a melhor forma de garantirmos que o Irão não fabrica uma bomba nuclear.” Barack Obama, finalmente a justificar o Prémio Nobel da Paz, ao NYT
“A maior parte das vezes, as pessoas são mais desesperadas e
ridículas do que heróicas. E então eu faço [represento] o que tem de ser
feito.” Viggo Mortensen, o anti-herói, ao Guardian
O QUE ANDO A LER
Um dia, falávamos de Ernest Hemingway e disse-me que os bons escritores eram aqueles que punham a palavra certa a seguir à outra - e por ali adiante. Como se as frases estivessem escritas no tempo e destinadas a serem assim e alguém lhes tivesse preenchido os espaços em branco. Tudo faz sentido. E isso é verdade no “The Essential Hemingway”,
que é um conjunto de pequenos (e também não tão pequenos assim)
romances e de pequenas histórias escritas como só ele podia escrever. De
tudo o que li – e ainda não li tudo, e volto a ele por ciclos – o “Hills Like White Elephants”
é o conto mais extraordinário. E inquietante. É um diálogo entre um
americano e uma americana numa qualquer estação de comboio de Espanha. A
conversa é mundana até deixar de o ser porque no meio dele e dela está a
tensão e o desconforto de quem quer fazer uma coisa que o outro não
quer. Quase que implodem.
Quem não explodiu foi Hitler para frustração de Georg Elser, nesta história incrível recuperada pela BBC. Elser era um carpinteiro alemão que tinha detalhadamente planeado um atentado na cervejaria de Berlim onde o ditador dava os seus espectáculos de oratória. Durante 30 dias, Elser entrava tarde no estabelecimento e deixava-se ficar até que o dito fosse fechado;
depois, noite após noite, ia ‘escavando’ um pilar junto do palanque
onde Hitler discursava para lá pôr a bomba. Que rebentou tarde a 8 de
novembro de 1939.
Amanhã pela fresca receberá outra versão do Expresso Curto, melhor editada e remasterizada do que esta - é o director’s cut do Ricardo Costa.
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