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"O “Acordo Ortográfico” de 1990 (AO90) é “politicamente correcto”, mas científica e socialmente insustentável.
1. Em 9-12-2010, o Governo chefiado por José Sócrates aprovou uma Resolução, que viria a ser publicada em 25 de Janeiro do ano seguinte.
Essa Resolução do Conselho de Ministros (RCM) n.º 8/2011 antecipou o final do prazo de transição em 5 anos para todo o sistema de ensino (público, particular e cooperativo) – de Setembro de 2016 para Setembro de 2011 (RCM, n.º 3); e em 4 anos e 9 meses e 22 dias (1-1-2012) para a Administração Pública (directa, indirecta e autónoma – RCM, n.º 1; não para as autoridades administrativas independentes); e, por via do n.º 2, para todas as publicações em “Diário da República” [1]. Para além disso, a RCM adoptou o Lince e o “Vocabulário Ortográfico do Português” (VOP) [2].
Em 2011, a então Ministra da Cultura, Gabriela Canavilhas, lançou o conversor “Lince” e o “Vocabulário Ortográfico do Português”.
2. A “sanha acordista”, que primou pelo voluntarismo de querer mudar a ortografia portuguesa, na sequência da ratificação do 2.º Protocolo Modificativo ao AO90, levou a que o calendário de adopções do AO90, bem como “a avaliação e certificação prévia dos manuais escolares”, fossem aprovados pelo Secretário de Estado Adjunto e da Educação em 2-6-2010 [3].
Antes mesmo de a RCM 8/2011 entrar em vigor, em 31-12-2010, um Ofício da Directora-Geral de Educação, Alexandra Marques, informava a Comissão do Livro Escolar da APEL sobre a “boa nova”: a aprovação da RCM. A implementação célere do AO90 no sistema de ensino era uma prioridade da Ministra da Educação, Isabel Alçada.
3. A partir de Abril, ocorreu uma crise política e financeira. Decorreram eleições legislativas antecipadas. Nestas, o Programa eleitoral do PS foi o único, de entre os partidos representados na AR, que mencionava o AO90. Todos os outros Programas eram omissos a esse respeito.
O PS perdeu as eleições. O Governo de coligação PSD-CDS entrou em funções. Porém, nada mudou quanto à implementação do AO90. Os responsáveis dos partidos do Governo, que nada tinham dito sobre o AO90 antes das eleições, que escreveram o Programa de Governo em Português correcto, não revogaram a RCM n.º 8/2011, antes lhe deram continuidade [4], defraudando os que neles votaram e para tal não os mandataram.
Em 19-5-2014, o Primeiro-Ministro assinou uma resolução fundamentada, opondo-se a uma Providência cautelar que visava não impor a obrigatoriedade do AO90 nos exames do 6.º ano, entendendo que o adiamento “da aplicação das regras ortográficas convencionadas no Acordo Ortográfico de 1990, aos exames nacionais do 6.º ano (...), causa graves prejuízos para o interesse público”.
4. Porém, a maioria dos vários titulares geralmente não escreve em “acordês.
Fonte próxima do Primeiro-Ministro assevera que este não escreve com o AO90; escreve em Português normal, convertendo os textos para Lince. O mesmo se passa com outros membros do Governo; e com muitos outros órgãos da Administração Pública, designadamente nas novilinguisticamente designadas “atas” (em lugar de “actas”), com eliminação da consoante ‘c’ com valor diacrítico.
A Assembleia da República (AR), em 15-12-2010, ainda sob a Presidência de Jaime Gama, aprovou uma Deliberação (n.º 3-PL/2010), mandando “aplicar” o AO90 a todos os documentos oficiais [5], a partir de 1-1-2012, utilizando o Lince e o VOP.
Desde Janeiro de 2012, os serviços da AR têm utilizado sofregamente o Lince para converter os textos dos Deputados [6].
Também o Presidente da República afirmou que escreve conforme “aquilo que aprendi na escola”. Porém, os seus “discursos saem com o acordo ortográfico”; isto é, segundo se depreende, com o conversor Lince (notícia “Cavaco elogia Acordo Ortográfico mas confessa que em casa ainda escreve à moda antiga”, in Público, 22-5-2012).
4.1. A Imprensa Nacional – Casa da Moeda, a quem cabe a edição electrónica do “Diário da República”, em 19-12-2011, enviou uma “informação” a todas as entidades emissoras, instando a que todos os actos enviados para publicação estivessem grafados em “acordês”. Todos os documentos administrativos, que não estejam grafados em “acordês”, são mandados de volta.
Naturalmente, a “melhor” forma de cumprir essa exigência é através do conversor Lince.
4.2. O anterior titular do cargo de Provedor de Justiça, Alfredo José de Sousa, emitiu o Despacho interno DI/1/2012, de 3-1, mandando “aplicar” o AO90 à Provedoria de Justiça; regulamento interno este que é imperativo, sob pena de sanções disciplinares [7].
Começou então o recurso ao Lince.
O actual titular do cargo de Provedor de Justiça [8], Doutor José de Faria Costa, Professor Universitário de elevado prestígio, sobretudo como Penalista, começou por fazer um discurso de tomada de posse em Português costumeiro. Porém, os dias foram passando, e nenhuma decisão vinha do novo Provedor em relação ao AO90. Até que Faria Costa declarou [9]: “na Provedoria, o meu antecessor adoptou-o e eu considerei que seria, no mínimo, pouco elegante alterar esta posição. Tanto mais que a provedoria, mesmo sendo um órgão de Estado independente, tem uma ligação muito forte à Assembleia da República. Assim, escrevemos da mesma maneira”.
Com o devido respeito, parece-nos haver uma petição de princípio: é que as questões jurídicas antecedem as questões de mérito. A 2.ª justificação dada não tem cabimento, em nosso entender, pois a colaboração com a AR resume-se a pouco mais do que um Relatório anual de actividades [10]. A actividade do Provedor de Justiça dirige-se, sobretudo, a fiscalizar a Administração Pública.
Para além disso, o Provedor é um órgão independente, não abrangido – tal como os tribunais – pelo n.º 2 nem pelo n.º 1 da RCM.
4.2.1. Porém, como cidadão, o Doutor Faria Costa era contra o AO90, tendo assumido isso publicamente [11]. Como Jurisconsulto, considerou que o AO90 não estava em vigor na ordem jurídica internacional [12].
Não obstante, após a tomada de posse como Provedor de Justiça, investido no cargo, Faria Costa não revogou o Despacho do anterior Provedor, mandando “aplicar” o AO90 aos serviços da Provedoria de Justiça.
4.2.2. De que forma? Uma vez mais, recorrendo ao Lince: à pergunta sobre “como faz no dia-a-dia?”, Faria Costa respondeu: “Continuo a escrever fora do acordo ortográfico e as senhoras secretárias mudam os textos para a formulação actual. É uma questão importante que não menosprezo, mas não é a que mais me preocupa”.
Isto significa que também o Provedor de Justiça, que escrevera dois artigos contra o AO90, já não acha a questão importante no exercício de funções; e rendeu-se à proficiência do Lince.
4.3. Muitos mais órgãos e entidades – parlamentares, governamentais, administrativas e judiciárias [13] - actuam da mesma forma: escrevem em Português costumeiro; depois, convertem os textos para “acordês” através do Lince.
4.4. A propósito, é grave é o facto de, não obstante o n.º 1 da RCM não ser aplicável ao Ministério Público, o sistema informático que foi inserido está com as ferramentas do “acordês” (v. g., o Lince). Esta operação material é uma violação clara do princípio da legalidade, por falta de norma habilitante a “aplicar” o AO90 ao Ministério Público.
4.5. Várias Editoras, ávidas de vender livros no Brasil ou, pelo menos, pensando que o AO90 seria “obrigatório” na vida dos particulares (o que não é verdade), pressionam os autores a converterem os livros no prelo com o Lince.
4.6. Chega a haver pessoas que dizem ser a favor da “nova ortografia”; mas, “para não se enganarem”, escrevem “à antiga” (isto é, segundo a ortografia costumeira) ou tentam escrever “segundo” o AO90, com o resultado de se detectar multigrafias pessoais, violando o próprio AO90 (por ex., na escrita dos meses).
5. Porém, como está comprovado cientificamente, o Lince é susceptível de violar o AO90, designadamente as normas que prevêem as denominadas “facultatividades” (basta colocar o Anexo I no Lince, para que, na Base IV, n. 1, c), para que vários lemas sejam convertidos: “aspeCto” é convertido para “aspeto”; “caCto” - “cato”; “caraCteres” - “carateres”; “seCtor” - “setor”; “concePção” - “conceção”; “recePção” para “receção”.
Note-se que “conceção” e “receção” são palavras inventadas pela Base IV, n. 1, al. c), do AO90, dado que não existiam nem em Português europeu, nem em Português do Brasil [14].
Destarte, que os órgãos grafam textos incorrendo em ilegalidade “sui generis”, por violação das Bases do Tratado do AO90, e também em inconstitucionalidade orgânica e material, por violação de actos inferiores interpretarem autenticamente (atente-se na opção: “Criar nota de rodapé indicando que o texto está conforme o Acordo Ortográfico”) ou fazerem integração de lacunas de actos com hierarquia superior [15].
5.1. O Lince “varre” tudo a “acordês: citações de obras em Português costumeiro, títulos de livros ou artigos; e até mesmo nomes de pessoas [16].
O “Lince” (tal como o VOP) assume-se assim, despudoradamente, como uma máquina trituradora e desumanizada, para a Língua Portuguesa, deturpadora da correcta expressão escrita e do pensamento científico.
5.2. Está aqui patente a degeneração do progresso científico, no âmbito da impregnação totalitária da democracia: os instrumentos técnicos tornam-se ditatoriais e viram-se contra o próprio homem que os utiliza, redefinindo os seus comportamentos [17].
Em particular, o “Lince” é, uma ferramenta prejudicial para a Língua Portuguesa e deturpadora do pensamento científico.
Todos os instrumentos de “aplicação” do AO90 não respondem adequadamente à tarefa, praticamente impossível, de escrever “segundo” o AO90.
“No caso da mutação desvantajosa do AO90, verificamos que o seu deplorável estado vegetativo somente se mantém porque foi ligado à máquina por "tecnologia política", e a sua falsa vida, prolongando-se, está a proporcionar uma agonia intolerável aos que lhe sofrem os efeitos” [18].
“Por favor, desliguem a máquina!”, pois “o resultado catastrófico do abortivo AO90” está à vista [19].
6. Pergunta-se: o que faz correr os políticos e os titulares dos cargos públicos atrás do AO90, em épocas tão distantes como 1986 (AO86), 1990-1991 (Primeiro-Ministro Cavaco Silva e Sec. de Estado da Cultura, Santana Lopes), 2000, 2008, 2009, 28-2-2014 [20]? [21].
Há, desde logo, um factor a ter em conta, para quem leia o AO90: a “Nota Explicativa” (Anexo II), de deficiente qualidade, cheia de falácias, induz os políticos em erro, no sentido de estes aceitarem o AO90.
Em todo o caso, julga-se que a explicação reside na falta de estudo e preparação sérias sobre os problemas linguísticos subjacentes ao AO90 por parte dos políticos e responsáveis.
Para o PS, trata-se de defender “a obra feita” entre 2008 e metade de 2011 [22].
Para o actual Governo desde 2011, continuar com a “obra” do AO90 é um mistério. Recorde-se que, durante a campanha eleitoral de 2011, Passos Coelho enviou uma resposta a um militante, dizendo que era contra o AO90. Paulo Portas foi, em tempos, um opositor acérrimo do AO86 e do AO90, no “Independente”.
Para a generalidade dos Partidos com assento parlamentar, há uma grande permeabilidade à substituição da Ciência pela Retórica; há uma patente falta de informação.
7. Julga-se que a crise económico-financeira que o País atravessa gerou um anestesiamento da “força normativa da Constituição” e uma menor sensibilidade (: uma des-sensibilização) por parte de pessoas componentes do Povo português à sua ortografia costumeira, bem como ao dever fundamental de não atentar, preservar e valorizar a Língua Portuguesa [23]-[24].
O caos ortográfico gerado pelo AO90 e pelas suas mais variadas e controversas formas de “aplicação”, ainda para mais num país em crise, é, a nosso ver, pernicioso para a estabilidade ortográfica e para a normatividade constitucional.
8. A ortografia visa “codificar e garantir a coesão da língua escrita normalizada de uma comunidade nacional” [25].
O “Acordo” não é, em rigor, “acordo”, pois não unifica em larga medida as formas ortográficas, e não é seguido em grande parte dos PALOP’s, que têm línguas nacionais para além do Português; nem é “Ortográfico”, pois, ao instituir facultatividades [26] atenta contra o conceito normativo de ortografia, dando azo a multigrafias e tornando os textos mais obscuros de significantes e de significados.
O AO90 nem sequer institui uma “nova ortografia”, uma vez que é uma versão mitigada do AO86, que, por sua vez, encontra as suas raízes textuais no Projecto de AO de 1975, negociado entre 1971 e 1975, na sequência de um Simpósio coimbrão de 1967 [27].
A imposição arbitrária e atabalhoada do AO90 constitui um rude atentado à matriz identitária do Património Cultural de Portugal.
9. Dado que as vias políticas de resolução do problema estão, neste momento, esgotadas, resta aos cidadãos cônscios o direito de resistência face às normas inconstitucionais do AO90 e da RCM (art. 21.º da Constituição); e intentar acções judiciais nos tribunais, v.g., acções populares contra a “aplicação” do AO90.
Jurista
[1] Incluindo sentenças de tribunais, em clara usurpação de poderes, pois um regulamento do Governo não pode regular a função jurisdicional; em violação dos princípios da separação de poderes, da paridade entre órgãos de soberania e da independência do poder judicial.
[2] V. IVO MIGUEL BARROSO, resumo das inconstitucionalidades da RCM em http://www.verbojuridico.com/ficheiros/doutrina/constitucional/ivobarroso_acordoortografico.pdf.
[3] Na sequência da proposta da Comissão do Livro Escolar da Associação Portuguesa de Editores e Livreiros, com alterações posteriores.
[4] Designadamente em relação ao calendário escolar de “aplicação” do AO90 no sistema de ensino continuou; v.g., não certificando manuais escolares que não “aplicassem” o AO90.
[5] Nos trabalhos parlamentares, no “Diário da Assembleia da República” (I e II séries), e em todas as plataformas de comunicação computacional — Canal Parlamento, edições e portal da Internet.
[6] Já antes, desde 1-6-2011, “a circulação unicamente electrónica das perguntas e requerimentos” utilizava o Lince (Deliberação da AR n.º 3-PL/2010, n.º 6).
[7] Cfr. art. 42.º, “in fine”, do Estatuto do Provedor de Justiça.
[8] Eleito pela AR em 24-7-2013.
[9] Na sua 1.ª entrevista, ao Jornal “i”, em 2-12-2013.
[10] Porventura, também a eventuais recomendações, designadamente sinalizações de deficiência de legislação à AR, emissão de pareceres que a AR solicite (art. 20.º, n.º 1, als. a), b) e c), do Estatuto do Provedor de Justiça, alterado pela Lei n. 17/2013, de 18-2) (o art. 26.º não tem efectividade); e à eventual presença do Provedor de Justiça na AR, para ser ouvido em audição, sempre que solicitado; sendo que a audição é geralmente oral.
[12] V. FARIA COSTA/FRANCISCO FERREIRA DE ALMEIDA, O chamado 'novo acordo ortográfico': um descaso político e jurídico, in Diário de Notícias, 13-2-2012, http://www.dn.pt/inicio/opiniao/interior.aspx?content_id=2300823&page=-1; e Faria Costa, ‘Memorandvm’ tópico para uma apreciação racional dos problemas suscitados pelo chamado ‘Novo Acordo Ortográfico’, in Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, vol. LXXXVIII, Tomo I, 2012, pp. 313-315.
[13] Incluindo Tribunais de topo, como o Tribunal Constitucional ou o Supremo Tribunal de Justiça.
[14] Está inventariada a invenção de mais de 200 “novas” palavras por parte do ILTEC - v. MARIA REGINA ROCHA, A falsa uniformidade ortográfica, in Público, 19-1-2013.
[15] Cfr. art. 112/5, 2.ª parte, da Constituição (CRP), aplicável, “a fortiori”, às convenções internacionais.
[16] O nome “BaPtista” é convertido para “Batista”, em violação da Base XXI do AO90.
[17] V. PAULO OTERO, Instituições políticas e constitucionais, I, Coimbra, 2007, pp. 636, 632.
[18] ANTÓNIO DE MACEDO, in Público, 11-6-2013.
[19] Cfr. ANTÓNIO DE MACEDO, in Público, 11-6-2013.
[20] Data discussão em Plenário da “Petição pela desvinculação…”.
[21] V. IVO MIGUEL BARROSO, Os responsáveis políticos pelo “Acordo Ortográfico” de 1990, in O Diabo, 13 de Maio de 2014, pgs. 8-9 (publicado também em http://republicadigital.blogspot.pt/2014/05/os-responsaveis-politicos-pelo-acordo.html).
[22] Veja-se a intervenção na AR do líder, ANTÓNIO JOSÉ SEGURO, na reunião plenária de 3-2-2012, em que pediu explicações ao Primeiro-Ministro sobre a recusa de “aplicação” do AO90 por parte do Presidente recém-nomeado Presidente do Centro Cultural de Belém, o coerente e impecável Dr. VASCO GRAÇA MOURA.
[23] Art. 78.º, n.º 1, 2.ª parte, da CRP.
[24] Bem longe da discussão polémica, dos debates acesos e do amplo Movimento desacordista que emergiu na sociedade civil, aquando do Projecto do AO86; do AO90, em 1990/1991; e mesmo do 2.º Protocolo, em 2008-2009, quando a crise financeira internacional implodiu.
[25] ANTÓNIO EMILIANO, Apologia do Desacordo Ortográfico, pg. 141.
[26] Base IV/1/c); na acentuação (Base IX); e no uso de maiúsculas e minúsculas (Base XIX).