no dn em linha...
"Se há mais de 20 anos se concluiu, a nível internacional, que o
modelo escolar está esgotado, por que não se faz uma reforma profunda em
vez de mudar pormenores, instabilizando alunos, professores e famílias?
O especialista cita os exemplos do ensino na Finlândia e nos jesuítas
catalães.
Tem havido discussão à volta da questão dos anos dos exames. Essa questão é central na educação?
A
questão central da educação, de facto, não é essa, não passa por aí. É
ser capaz de fazer que as novas gerações adquiram o conhecimento
codificado que vem do passado e ajudá-las a desenvolver-se e a tomar
conta do seu destino e da comunidade. Hoje, isso é feito cada vez com
mais dificuldades, não cá em Portugal mas em todo o mundo. O modelo
escolar vem do século XVIII - até vem de antes, mas desenvolveu-se mais a
partir de então - e tem imensas dificuldades em adaptar-se à nova
realidade. O mundo mudou muito.
Porque é global e todos temos acesso a informações de todos os lados?
Exatamente.
E um acesso a conhecimento muito mais organizado, por causa de todo o
investimento em inteligência artificial. É um mundo onde a tecnologia
permite às crianças manipularem artefactos técnicos muito evoluídos,
desenvolvendo uma capacidade mental diferente da das gerações
anteriores. Mas quando se chega ao 1.º ano, a escola age mais ou menos
como há 30 ou 40 anos. A cabeça com que as crianças vêm está moldada
segundo outros modelos, já não é a mesma coisa. As dificuldades de
ensino e aprendizagem são muito mais vastas do que as do passado. Há uma
inadaptação da escola ao novo. Trabalho muito com escolas e no
dia-a-dia. Até recentemente, os professores atribuíam o insucesso às
famílias. Ainda ocorre muito essa justificação.
E é verdade?
Isso
é uma premissa. O trabalho da escola tem de ser feito a partir daí,
seja lá qual for o contexto. E isso é difícil, claro. Agora as queixas
são sobre a desmotivação e a indisciplina, dois aspetos que estão
associados. Por outro lado, revelam que a capacidade de captação da
atenção que a escola antes produzia hoje é muito difícil. Os miúdos
estão profundamente dispersos, com a atenção captada por realidades fora
do contexto escolar que os motivam mais. A motivação, que é uma função
escolar por excelência, tornou-se um pré-requisito. E isso é revelador
da dificuldade da educação escolar em lidar com os tempos novos. Se esse
pré-requisito existisse, a desigualdade social ainda seria maior. Se as
crianças têm de chegar motivadas à escola para poderem aprender, se
isso não é um trabalho escolar...
Que
tipo de decisão é necessário que o Ministério da Educação tome para
combater esse problema? Não estamos a falar de decisores e professores
que não têm o mesmo tipo de "cabeça" que os alunos trazem?
Sim.
O que significa que é preciso intervir, primeiro, nos professores?
Sim.
É preciso fazer uma reforma a sério em vez de alterações pontuais? Rever todo o modelo?
Como,
não sei, mas que o modelo precisa de revisão profunda, isso está claro.
Nos anos 1990, quando representei Portugal num organismo da OCDE que
trata da inovação e educação, ano após ano dávamo-nos conta de que o
caminho não pode ser este. Este modelo está esgotado. Há um bloqueio,
não avança. Como nós - de 31 ou 32 países - nos dedicávamos à inovação e
educação, percebíamos que no mundo iam surgindo dinâmicas de mudança.
Ao fim dos cinco anos em que lá estive, uma das perguntas que mais me
fazia era: se toda a gente percebe, por que é que isto não muda?
E porquê?
Vivemos
ambientes democráticos e é muito difícil que um partido se disponha a
propor mudar o modelo escolar. Ninguém aceitaria, seria uma ótima forma
de perder as eleições dizer, por exemplo, que queria mudar as
disciplinas, os horários, os grupos de turma e os professores e a forma
de trabalhar dos professores. Porque o que está em causa é que todo o
modelo de organização pedagógica da escola tem de ser mudado. E isso não
sei se vem de cima ou se vem de baixo.
É necessário um acordo de regime?
Sim.
Pelo menos um entendimento entre algumas forças sociais e políticas.
Aliás, o que revela esta geringonça da avaliação, por exemplo - para
usar um termo na moda - é que tem muito que ver com isso. Vamos às
escolas, trabalhamos com as famílias e o que mais pedem é: "Entendam-se,
por favor!" O povo quer que os dirigentes políticos se entendam e os
dirigentes políticos preferem fazer da educação um campo de batalha
política. Isto é dramático!
É pôr pensos rápidos nos sítios onde a pessoa tem uma doença grave?
Exatamente. Há um sintoma. Mas nunca se ataca a doença.
As experiências inovadoras, na Finlândia e na Catalunha, mudam o quê?
Mudam
a forma de organizar o ensino e a aprendizagem. O modelo escolar
tradicional é alterado. É muito importante o passo que está a ser dado
na Finlândia.
Por ser aplicado a nível nacional?
Por
isso e porque é fruto de uma decisão política nacional. É a primeira
vez. Há um país que dá o primeiro passo para aquilo por que há 20 anos
ansiávamos.
No caso da
Catalunha, não é o ensino do Estado, é particular. O Estado tem mais
dificuldade, pela necessidade de um acordo entre os vários partidos?
Exatamente.
Mas a Finlândia veio abrir caminho, já é possível recorrer a uma
externalização para justificar. É a Finlândia, o centro do mundo neste
campo, que faz a mudança, e isso faz toda a diferença.
E na Fundación Jesuitas Educación, uma rede de colégios da Catalunha?
Ainda
não estão todos os colégios envolvidos, porque tiveram de fazer
alterações físicas brutais. A dinâmica que está em curso na Catalunha
demorou 15 anos a ser preparada. Desde a primeira reflexão, a primeira
estruturação, até à questão dos recursos. Criaram um fundo entre as
escolas todas para construir.
E é seguro?
É
muito seguro porque já está a ser experimentado. Como o modelo é muito
descentralizado e municipalizado, a cidade de Helsínquia já o tem
aplicado em larga escala. Quando a decisão foi tomada já estava
trabalhada e consensualizada, em termos políticos. As instâncias que
refletem sobre estes temas já produziram muitos documentos. Quando, no
próximo ano letivo, o modelo tiver aplicação nacional, já há muito
trabalho feito e há segurança. É um passo importantíssimo. Tenho um
texto sobre os casos da Catalunha e da Finlândia, que se chama Há uma
brecha no dique. Essa brecha só pode alargar.
É irreversível?
Nunca mais se vai voltar para trás.
O que é diferente no novo modelo?
Na
Finlândia, a mudança é ao nível da organização do trabalho escolar, que
tem repercussões muito idênticas à Catalunha. O ensino passa a ser
organizado por projetos... chamam-lhes fenómenos ou temas. Os
professores, antes do início do ano letivo, organizam-se e estruturam
uma boa parte do currículo - não é necessariamente a totalidade do
currículo, porque é muito difícil fazer isso. Mas, por exemplo, 60% do
currículo, é estruturado em torno de grandes temas agregadores, tendo em
conta os interesses dos miúdos nas idades respetivas e a experiência
que os professores têm com eles.
E que tipo de tema pode ser esse?
Por
exemplo, há um problema da comunidade, uma necessidade que é preciso
estudar, ou um tema que interessa aos alunos, ou um assunto em torno da
natureza que mobilize conhecimentos nesses domínios. Os saberes de todos
os anos letivos, organizados por pequenas unidades curriculares - de
ciências, de língua materna, de matemática, de inglês - são mobilizados
para os projetos. E há conteúdos que são dados em aulas tradicionais.
Isto permite que os pro- fessores trabalhem interdisciplinarmente e em
equipa.
Há diferenças entre os dois modelos, o finlandês e o jesuíta?
Os
jesuítas da Catalunha vão mais longe porque agregam duas a três turmas.
Isto obriga a deitar abaixo as paredes das escolas. As nossas escolas,
incluindo as acabadas de construir pela Parque Escolar, onde se
investiram centenas de milhões de euros, são para a educação escolar do
século XVIII. Ninguém pensou em perguntar: "O futuro é este?" Estamos a
construir hoje escolas que dentro de 5, 10, 15, 20 anos vão ter de ser
alteradas, porque não é possível mais lecionar e organizar a escola em
termos de grupos de 25 ou 30 alunos. Organizam-se grupos de 75, por
exemplo, há dois ou três professores na sala que exploram os temas com
diferentes grupos, com diferentes dinâmicas. E há uma mudança profunda
na organização dos horários. Porque os alunos, numa parte importante da
sua vida, vêm para a escola para continuar a pesquisa para o projeto.
Até desse ponto de vista o vir à escola ganha outra...
...motivação?
Exato.
E assim estamos a responder às questões de fundo: motivação, interesse,
ser capaz de captar a atenção dos miúdos. Os professores queixam-se
imenso, hoje, da dificuldade de ter os miúdos concentrados no que estão a
fazer.
Há um grande medo da mudança. É preciso preparar um país para uma reforma destas?
Cada
escola tem de ir criando condições para dar este salto. Aí temos muito a
percorrer, porque pode haver também redes de escolas a fazer
cooperativamente as mudanças. Em Portugal, temos uma grande experiência
de trabalhar com projetos integradores, sobretudo nas escolas
profissionais do ensino secundário em imensos sítios. São casos
exemplares. Nós já fazemos o que a Finlândia quer fazer. Constroem mesmo
um projeto integrador. Por exemplo, existe um problema para resolver na
comunidade e os professores juntam-se. O ensino aí funciona por
módulos. E então os professores verificam que módulos podem ser
mobilizados. Desenvolvem o projeto em conjunto e aplicam--no. Na minha
universidade, vamos fazer um um e-book só com exemplos destes.
Trabalha-se muito bem a esse nível, em Portugal.
Portanto, é perfeitamente possível?
É possível em qualquer sítio.
Porque é que, no ensino básico, as pessoas têm medo?
Mas
também têm no secundário. Isto faz-se minoritariamente. Têm medo porque
este passo não é simples. Estamos a tentar fazer isso no interior norte
do país, numa escola TEIP [programa Territórios Educativos de
Intervenção Prioritária] com muitas dificuldades e está a ser muito
difícil. Há muita resistência porque é uma nova metodologia que obriga
os professores a trabalhar mais cooperativamente. Para uns é pacífico,
para outros não. Implica, um modo de ensinar e uma forma de aprender que
não são tradicionais. No contexto de algumas escolas profissionais,
desde a raiz, isso conseguiu-se, mas é mais difícil passar à
generalidade do sistema, porque nunca houve uma perspetiva integradora e
flexível para trabalhar em projetos. A questão é passar de um sistema
rígido a um sistema flexível. E não há nada na lei que diga que isso não
pode ser feito.
Com a nossa legislação, seria possível começar?
Perfeitamente
possível! É uma questão de organizar a escola. A principal dificuldade
que encontramos, no caso que referi, é nos professores, na capacidade de
formular a nova maneira de trabalhar. "Como vou integrar este saber com
aquele?" Também há mil problemas com o facto de trabalharem em conjunto
uns com os outros. Propomos esta dinâmica e muitos professores ficam
motivados, porque sabem que isto vai motivar imenso os alunos. Mas
depois: "Como avalio? Numa dinâmica de grupo, como traduzo isto em
avaliação individual?" São estas as questões que emperram...
E como se faz a avaliação nesse novo modelo?
A
avaliação pode ser mobilizada quer em termos individuais, quer em
termos de equipa. Isso tem é de ser clarificado antes. Na formulação do
projeto, têm de estar os objetivos a atingir, a maneira de lá chegar e
as regras de avaliação: como é que cada um deles vai ser avaliado. E há
imensas formas de fazer isso numa dinâmica formativa e não só. Para
produzir a classificação, é mais simples. Mas é uma lógica de avaliação
formativa: "aprendeste, não aprendeste", "se não aprendeste, porquê?
Como dar a volta?" Essa dinâmica, como implica o processo de avaliação
formativa, mexe mais com os professores. Diz-se muito agora: "Nós não
queremos exames, queremos é avaliação formativa." Eu trabalho nas
escolas, os professores classificam. Os professores sabem é classificar.
O governo pode dizer que vai, sobretudo, haver avaliação formativa, mas
isso não diz nada. O grande trabalho a fazer em Portugal é escola a
escola, a tentar dar estes passos com consistência, com tempo. Isto
demora muito a mudar. Na escola de que falei, estamos a caminhar há
meses e há uma vontade enorme de fazer melhor. Os professores têm uma
dedicação que, em muitos casos, é desmesuradíssima. Por vezes estão a
fazer o que está provado que não resulta, mas trabalham loucamente, do
ponto de vista profissional.
É preciso parar para olhar?
Pois. Refletir. Isto não pode ser assim.
As escolas superiores de educação não devem também espelhar isto tudo?
Deviam.
Uma das coisas mais em causa é a formação inicial dos professores e a
formação contínua, porque uma grande parte dos professores já está no
sistema. Dentro de 10 ou 15 anos haverá uma grande oportunidade porque
vão sair muitos milhares. Vem aí uma nova vaga que já devia chegar à
esco-la com esta nova mentalidade. É também um problema político, porque
está em causa o acesso à profissão. Eu tenho-me batido por isso e
publicado pequenas coisas: é preciso dignificar mais a profissão
docente, do ponto de vista da sociedade em geral. Tenho sugerido que a
média de acesso aos cursos de formação inicial de professores tenha o
mínimo de 16. E isto é uma decisão política.
Para que os melhores sejam professores?
É
uma medida política! Não custa nada! É só publicar um decreto-lei, não
tem interferência em coisa nenhuma a não ser nos cálculos para o acesso,
que se podem colocar no computador. E pode dizer imenso. Se fizéssemos
isso e revíssemos as regras de acesso à profissão docente e a formação
inicial e contínua, podíamos estar a preparar os verdadeiros alicerces
de uma educação diferente daqui a 20, 30 anos. Era isso que devíamos
fazer. O que é que estamos a verificar? Nos últimos 20, 30 anos, acede à
profissão docente um número razoável de jovens competentes mas também
um número enorme de jovens que têm péssimas notas. E são professores.
Entram com médias de 10, 11 ou 12... são pessoas com muitas
dificuldades. A disputa que aqui se faz em torno da medicina, na
Finlândia é em torno de ser professor, e o acesso à medicina fica a
anos-luz do acesso à profissão docente.
Isso é estruturante?
É
um trabalho que a Finlândia faz há 30 anos. Começou a investir na
profissão docente, a mudar a formação inicial, a mudar as regras de
funcionamento da profissão. E a pedir muito em troca. Por cada coisa que
se dá, tem de se pedir muito em troca, do ponto de vista profissional e
de exercício de responsabilidade: muita autonomia, mas muita
responsabilidade. A realidade da Finlândia é essa. Nós temos agora essa
oportunidade. Como temos um nível etário muito elevado, uma média de
mais de 40 anos, dentro de 15 anos, no máximo, vamos ter a possibilidade
de substituir um volume muito importante da geração dos professores.
A questão não se coloca, como dizem muitas pessoas, entre a permissividade e a disciplina?
Isso
é uma conversa estafada. Essas tensões existem mas o problema não é
esse. É uma mistificação, porque um sistema com exames pode ser
altamente permissivo. Ficam bem os que ficam bem no exame. E os outros?
Em Portugal, aumentou imenso, nos últimos anos, a retenção no 2.º ano.
Porquê? Pelo efeito do exame. Mas aprende-se melhor? Temos de ir um
bocadinho mais atrás, mais longe. Esse tipo de discussão cansa-me, não
conduz a nada. Vivemos num mundo de faz de conta: faz de conta que
escola funciona bem; faz de conta que os exames são bons para os alunos
aprenderem; faz de conta que os professores ensinam bem; faz de conta
que a legislação que o ministério põe cá fora é eficaz e que os
professores e as escolas a seguem, faz de conta que existe avaliação
formativa.
E depois trata-se o ranking das escolas como se fosse o grande objetivo?
Ou
como se fosse tudo. E não é. Eu coordenei a equipa que pôs os exames em
Portugal no 12.º, em 1993. Pela primeira vez, depois do 25 de Abril,
criámos exames. Duvidámos e discutimos muito se se devia fazer. Porque
sabemos o lado positivo e o lado negativo dos exames. Mas no caso do
12.º ano, creio que era mais ou menos inevitável. E tinha que ver também
com o modelo da certificação e com a desigualdade de critérios de
avaliação, porque havia escolas que davam notas inflacionadas internas.
Foi preciso calibrar para ter a certificação final do percurso escolar
antes do ensino superior. No 9.º ano, pode fazer sentido ter exames para
avaliar o percurso de todo o ensino básico. Mas o investimento tem de
ser no processo do ensino e aprendizagem. O problema está ali. Em
educação, o processo é o produto, é o processo que conta. A avaliação
externa e os exames são importantes, têm o seu papel. Mas isso não
invalida que a questão central tenha de ser outra. Ter mais uma prova
disto ou daquilo é irrelevante.
Qual é o caminho, então?
Nas
escolas onde trabalho, a minha preocupação é se os professores estão a
perceber os processos pedagógicos que eles próprios mobilizam. Refletem
sobre isso? Sabem os que são eficazes e os que não são? Otimizam os que
são eficazes? Estes é que são os núcleos. "Então sugerem-nos
metodologias novas?" "Sim, com certeza. Há estas, estas, estas, vamos
por este caminho, vamos por aquele". E as escolas mudam. E as pessoas,
depois, agarram-se e prendem-se. Há aqui um problema de software,
claramente. Hoje o problema é de software."
Sem comentários:
Enviar um comentário