no expresso em linha...
"Um dicionário é um livro frio? Errado. Um dicionário não é para ser lido do princípio ao fim, mas para ser consultado? Errado. Um dicionário apresenta as palavras corretas? Errado. Foi assim, um pouco ao contrário das expectativas, que Manuel Monteiro, revisor de profissão, estruturou o seu “Dicionário de Erros Frequentes da Língua”. Um livro para pôr ordem numa casa confusa, a casa da Língua Portuguesa. Pedimos-lhe que escrevesse uma carta de amor. Saiu um bilhete. E confrontámo-lo com a paixão pela Língua, tudo explicado por Manuel Monteiro, ele mesmo.
Desde 2004 que Manuel Monteiro é revisor - e agora também formador profissional de revisão de textos - e já publicou ficção (“O Suave e o Negro”). Com o dicionário, da Soregra editores, traz para a discussão palavras e situações que muitas pessoas usam de forma incorreta e outras que a maior parte das pessoas desconhecia totalmente. Como “vocês ainda terão saudades nossas”, quando deve ser “vocês ainda terão saudades de nós”; ou “isto é uma verdadeira salganhada”, em vez de “isto é uma verdadeira salgalhada”, a forma correta.
A palavra a Manuel Monteiro
Porque é que começou a colecionar erros de Português? Como os organiza na sua coleção? Entre “comuns” e “raros” ou há mais categorias?
Quando comecei a trabalhar como revisor literário, em 2004, fui armazenando erros frequentes e pouco conhecidos, até porque o que havia sobre o assunto era muito antigo ou muito superficial. Dar aulas diariamente de revisão de textos também me ajudou. As dúvidas dos alunos obrigam-me a estudar todos os dias. Demorei dez anos a respigar, a investigar, a debater com outros filólogos, revisores, professores. Não compilei os erros mais básicos, como “não chegas-te a horas”, “à uma semana”, “tu fizestes”.
Falamos e escrevemos mal porque ouvimos mal? Devíamos ser mais bem alfabetizados ou ter aulas de fonética?
A linguagem pública degrada-se dia a dia, recorrendo cada vez mais ao mesmo saco de 100/150 palavras; os anglicismos, mormente do baixo inglês — da finança, do jargão empresarial, da publicidade, da tecnologia — obsidiam-nos por toda a parte; os dicionários de grande consumo não distinguem palavra portuguesa de palavra estrangeira e vergam-se freneticamente àquilo a que chamo “o erro ou desvio da norma a vencer pelo cansaço”. Se a fonética fosse bem ensinada, não haveria tantos escreventes a não distinguir “cai” de “caí”. Aprendemos a decorar, não a compreender. Podemos compreender com o cérebro e também com o ouvido.
As aulas de Latim fazem falta?
Sim. Como a etimologia, os estudos clássicos, a leitura de Camilo. Com a pletora de estímulos a tombar de minuto a minuto, as pessoas perdem memória, capacidade de concentração, de reflexão, de ligação entre as coisas.
Ficou assim por ser filho de uma professora de Português?
O facto de a minha mãe ter muitos livros sobre Língua ajudou-me. Os meus pais sempre falaram de literatura comigo. Importante foi também o meu amigo Alberto Castro Ferreira, que me doou uns trezentos livros de filologia de Portugal e do Brasil, alguns dos quais não estavam no “mercado”, em bibliotecas e nem sequer em alfarrabistas.
Respeita o Acordo Ortográfico ou é um resistente?
Por razões muito longas de explicar, sou um resistente. Não aceito que “falámos”, “pára”, “pêlo” possam perder o acento; que “cor-de-laranja” perca os hífenes, mas “cor-de-rosa” não; que beber um copinho de leite seja o mesmo que uma pessoa que é um copinho-de-leite (com o Acordo de 1990, perde os hífenes).
É revisor. Já pensou em cobrar por cada gralha e erro encontrado?
O revisor deve folhear o livro antes de apresentar o orçamento. Como a conta é feita por caracteres, deve sopesar o trabalho que terá com um livro imundo e com um livro relativamente limpo.
Qual o futuro da Língua Portuguesa?
Assusta-me ouvir pais que delegam nos corretores a reescrita dos erros, transferindo o saber que os filhos deveriam ter para a máquina, que, de resto, é altamente falível, nomeadamente quanto à sintaxe. Assusta-me ouvir professores contentinhos com o menor número de erros dos alunos derivado das duplas grafias do Acordo ou do uso facultativo de maiúsculas ou da perda dos hífenes para conceitos distintos. Há adolescentes que escrevem com tantas abreviaturas e ícones que eu não consigo entender o que ali está. Também tenho alguma dificuldade em perceber o que alguns dizem, dada a forma como falam, não silabando, pronunciando cada vez mais rapidamente as palavras.
Como nasceu a sua paixão pela língua Portuguesa? O que tem ela de tão atraente?
A sua vasta sinonímia.
Conseguiria apaixonar-se por uma mulher que falasse mal Português?
Talvez. Uma pessoa não é só o seu intelecto. Veja o Joyce e a Nora..."
e, já agora:
"A carta de amor, escrita de modo correto"
"
As palavras e expressões corretas e, entre parêntesis, os erros e / ou as explicações
Saudades de ti (saudades tuas)
Olhos azul-claros (as
cores compostas são sempre hifenizadas e o plural é aplicado apenas no
último elemento e apenas quando este é de natureza adjetival)
Atenazar (é apertar com a tenaz, com o sentido de afligir)
Pelo visto (perante aquilo que foi visto, não vai no plural)
Espoletou-me (despoletar
é tirar a espoleta, o que serve para inflamar a carga de pólvora dos
projéteis das armas de fogo. Sem espoleta não há explosão. Despoletar é
travar)
Cartapácio (e não catrapázio. Carta ou mensagem muito grande, livro de lembranças ou apontamentos. Em sentido figurado, é material de leitura entediante)
Caterva (catrefada é a distorção de “caterva” - batalhão, em latim. Significa grande e indeterminada quantidade de coisas)
Namorar (não se namora com determinada pessoa, mas namora-se determinada pessoa)
Tal e qual (não usar a conjunção)
Estada / estadia (são conceitos diferentes, estada é o ato de estar, estadia é a demora)
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