Bom dia, este é o seu Expresso Curto |
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5 de Janeiro de 2016 | ||
Da importância das lavandarias e da hipocrisia de alta voltagem
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Zeca Afonso era antes de mais um poeta. Num tempo de fala curta, construía metáforas de alcance longo
e falava de vampiros para evocar quem de pés de veludo chegava para
sugar o sangue fresco da manada. O tempo era outro, a linguagem era a
possível. Ainda assim, entre o dito e o não dito, tudo ficava explícito.
Hoje vivemos uma era de palavra mais fácil e rápida. Nem por isso se
encontram metáforas bastantes para explicar o despudor
contido nas notícias sobre a facilidade de circulação de dinheiro. No
Expresso Diário, Micael Pereira, explica como, de acordo com um
relatório da Direção-Geral da Política de Justiça, o número de operações suspeitas de lavagem de dinheiro reportadas pelos bancos em Portugal aumentou 20% em apenas um ano. Entre 2012 e 2013 passou de 2020 para 2400 casos. 958 situações reportadas tinham origem em atividades criminais.
Deste universo, 60% dos casos provou-se estarem ligados a fraudes
fiscais, 8% provinham de receitas do tráfico de droga e outros 8%
reportavam a crimes de burla. O dado ainda mais preocupante já
assinalado por diferentes autoridades assenta na constatação de que os métodos utilizados pelas redes terroristas para financiar atentados e o armamento de grupos como o chamado Estado Islâmico na Síria,
confundem-se cada vez mais com os esquemas usados por organizações
ligadas ao tráfico de droga e por redes associadas a regimes corruptos.
Os setores imobiliário e de hotelaria, mas também os bancos, funcionam como plataformas cada vez mais vulneráveis para ações de branqueamento de capitais. Depois entram em cena os "offshores". Portugal, em plena crise, sangrava dinheiro para o exterior. Admite-se que possa ter saído um quarto da riqueza do país. Em 2011, o Banco de Portugal reconheceu que o investimento direto português no estrangeiro tinha aumentado 134%. Como os responsáveis do Banco de Portugal fazem parte dos fautores da novilíngua, quando referem investimento, querem mesmo dizer fuga de capitais. Uma fuga com a Holanda como destino onde se acomodavam 19 das 20 empresas que à data constituíam o glorioso e patriótico índice PSI-20 das maiores empresas cotadas na Bolsa de Valores de Lisboa. Admite-se que nos inúmeros "offshores" espalhados pelo Mundo, inclusive na Madeira, circulem verbas entre os 8 e os 32 biliões de dólares da riqueza privada, ou seja, perto de metade do PIB Mundial. Sabem-no os dirigentes dos principais países. Sabem-no os responsáveis pelos principais bancos centrais. Sabem-no as principais instituições judiciais e policiais. Uma coisa, porém, é saber. Outra é querer saber como atuar perante o combate à fraude e evasão fiscal, reconhecida por altos responsáveis da EU como uma questão crucial para a sobrevivência das economias europeias. Será? Ou será este reconhecimento uma outra forma de hipocrisia, semelhante à que leva políticos como Obama, Angela Merkel, François Hollande ou David Cameron, sempre tão diligentes a falar da defesa dos direitos humanos, a calarem o que se esperava fosse a sua indignação perante a execução, na Arábia Saudita, de 47 pessoas. Antes de serem muçulmanos e, por acaso, um deles clérigo xiita, são homens e mulheres com o azar de terem sido executados pela ditadura amiga, ou um "aliado infrequentável\", como titula um artigo da revista francesa Le Point. Vivemos, desse ponto de vista, tempos cruéis, marcados por lavandarias várias e hipocrisias sem fim. Como o revela a crise dos refugiados e o modo como vários países europeus estão a reagir a esta emergência social. Fecham-se fronteiras, como o fez ontem a Dinamarca ao fim de meio século de ligações abertas com a Suécia. Rasgam-se acordos e, como titula o El País, os controlos da Suécia e na Dinamarca aceleram o colapso de Shengen.. O refugiado foi eleito a figura internacional do ano pela redação do Expresso e pelos seus leitores numa votação "online". É uma preocupação central dos povos da Europa, onde, só em 2015, chegaram mais de um milhão de emigrantes sem papéis. Há quem lhes chame irregulares. Confirma-o a divulgação, ontem, dos resultados da iniciativa anualmente lançada pela Porto Editora para a escolha da palavra do ano. Quem votou escolheu o termo "refugiado". Ao nível dos sentimentos e solidariedade ativa das pessoas num drama feito gente, a chama vai alta. Ao nível dos Estados, vão por certo prosseguir as pequenas e grandes cimeiras com sonoras e pias declarações. No terreno, persistirá a certeza de que o fluxo migratório, nem se combate com armas, nem com manifestações de intenções. É a guerra. E cada guerra é o fruto de muitas guerras. Enquanto houver guerra, haverá refugiados. |
OUTRAS NOTÍCIAS
A pré-campanha das eleições presidenciais materializa-se no atropelo de sucessivos debates organizados pelas rádios e televisões. Há um evidente enfado no modo como têm sido comentados por quantos os analisam nos diferentes espaços públicos. Ontem, depois do mega debate na Antena 1, de manhã, com a presença de todos os candidatos, sucederam-se à noite os frente a frente televisivos. Uns mais escaldantes (Henrique Neto versus Maria de Belém), outros mais assente na memória de feitos e posições passadas (Marisa Matias vs Marcelo Rebelo de Sousa), outros apenas cordiais (Edgar Silva vs Sampaio da Nóvoa). Hoje há mais, numa procura do esclarecimento democrático. Está por demonstrar a eficácia do modelo, com acumulação de debates no mesmo dia, como está por provar a bondade democrática de uma alternativa minimalista, reduzida aos frente a frente entre os nomes mais mediáticos.
No dia a dia dos cidadãos impõe-se outro tipo de notícias, como a que nos indica estar o setor automóvel em recuperação, com 200 mil veículos vendidos em 2015, segundo o balanço publicado pela Associação Automóvel de Portugal. O crescimento é de 24% em relação a 2014.
Na próxima quinta-feira poderá sair da Assembleia da República uma boa notícia para quem depara com dificuldades económicas. Serão votados e aprovados, presume-se, os projetos-lei do PS, BE e PCP que impedem a penhora das casas aos cidadãos com dívidas ao fisco ou à Segurança Social.
No ensino, o Ministro da Educação vai apresentar um novo modelo de avaliação. O objetivo é tratar o ensino básico como um todo e integrar avaliação e aferição de forma faseada. O exame do 9º ano deve manter-se.
Está ao rubro a relação da angolana Isabel dos Santos com os responsáveis portugueses do BPI. Anabela Campos e Isabel Vicente dizem, no Expresso Diário, tratar-se de um imbróglio. Tudo porque Isabel está a encontrar Ulrich à parede e obriga a gestão do BPI a colocar a sua proposta de compra de 10% do Bando de Fomento de Angola (BFA) em cima da mesa. Com isto fica em causa o projeto de cisão das operações do BPI em África. Resultado, o BPI subiu 6% em bolsa após o conhecimento da proposta da empresária angolana.
Pinto da Costa volta a ser notícia por ter sido colocado num rol dos 57 arguidos por alegadamente ter requisitado serviços de acompanhamento e proteção pessoal a uma empresa, apesar de, segundo a Procuradoria Geral da República, saber "que quem os prestava não podia, nos termos da lei, fazê-lo".
Lá fora
Continuam a chegar notícias preocupantes oriundas de França. François Hollande lançou a polémica proposta de retirada de nacionalidade a quem for condenado por crimes de terrorismo e agora há vários legisladores franceses a pretenderem ir mais longe na revisão constitucional. Defendem que a punição deve ser extensível também a todos quantos não possuam outra nacionalidade para lá da francesa.
Ainda em França, sai amanhã, um ano após o atentado de que foi alvo, a edição de aniversário do Charlie Hebdo, com uma tiragem de um milhão de exemplares. A primeira página já foi divulgada por jornais de todo o mundo e mostra um deus barbudo com uma Kalashnikov às costas. Vai a correr, acompanhado do título "Um ano depois, o assassino continua à solta".
Aumentam as tensões no Médio oriente. O Sudão e o Bahrein decidram cortar relações com o Irão, em cuja capital, Teerão, foi invadida no sábado a embaixada da Arábia Saudita, na sequência de um protesto contra a execução do xeque Nimr al-Nimr.
A casa em Havana onde Ernest Hemingway viveu ao longo de 20 anos vai ser recuperada. Uma fundação com sede em Boston está a patrocinar os trabalhos de restauro, agora com a preciosa ajuda de uma figura muito popular nos Estados Unidos da América, Bob Vila, principal alma do programa televisivo "This Old House". Bob considera um americano-cubano, já que os seus pais, nascidos em Havana, emigraram para Miami durante a fase final da II Guerra Mundial.
FRASES
"Não estou a ver bem para o país que o Presidente da República tenha tido cargos de presidente de uma Comissão parlamentar ao mesmo tempo que tinha cargos privados". Henrique Neto no debate da RTP1 com Maria de Belém
"A minha ética é a minha ética. Num estado de Direito cumpro a lei. Nunca tive nenhum processo por dívidas ao fisco". Maria de Belém no debate da RTP1 com Henrique Neto
"Se vive bem com o facto de ter todas as posições possíveis para cada facto da sociedade, é uma questão sua, mas é um bocadinho incompreensível ter uma postura de que se pode ter todas as posições em relação a cada questão". Marisa Matias no debate da SIC Notícias com Marcelo Rebelo de Sousa
"Não é todas as posições. Tenho a posição de princípio que tenho, mas não posso ignorar como Presidente da República que sou P.R. de todos os portugueses e que há uma realidade que é sufragada.(...) O P.R. não passa por cima disso".Marcelo Rebelo de Sousa no debate da SIC Notícias com Marisa Matias
"Interesses financeiros levaram a situações dramáticas da nossa vida ao longo dos últimos anos e tornaram a política refém de lógicas financeiras". Sampaio da Nóvoa no debate da TVI 24 com Edgar Silva
"Não podemos continuar a ser o país da União Europeia que está entre os quatro países onde a injustiça na distribuição do rendimento e da riqueza criada é a mais vergonhosa. A maior parte para o capital. A menor para o fator trabalho". Edgar Silva no debate da TVI 24 com Sampaio da Nóvoa
O QUE ANDO A VER E A LER
Imagine por um instante esta hipótese: embora tenha todo o tempo do mundo à sua disposição, dispõe apenas de três horas para amar. São 180 minutos vigiados, espremidos até o último segundo. Depois, é o adeus total. O vazio absoluto. O regresso a uma vida controlada, da qual estão ausentes os afetos e das paixões fica apenas a memória. "3 Horas para Amar" é o título do documentário realizado com reclusas do Estabelecimento Prisional de Santa Cruz do Bispo, em Matosinhos, assinado por Patrícia Nogueira, uma ex-jornalista agora a lecionar a cadeira de documentário na Escola Superior de Música e Artes do Espetáculo, onde obteve o título de Mestre em cinema documental. Patrícia propõe uma viagem tão fascinante quanto perturbadora na companhia de quatro mulheres disponíveis para falarem da vida que tinham "lá fora" e da que passaram a ter no interior da cadeia. Ali, a rotina começa às 8h quando se abrem as celas. Umas vão trabalhar, outras ficam no pátio. Pela frente têm uma imensidão de tempo. Falam dos que não estão e, afinal, nunca deixam de povoar aqueles quotidianos. Os maridos, os companheiros, os filhos, as mães, os amigos que às vezes já o não são tanto.
Uma vez por mês, durante três horas, as reclusas abrangidas pelo regime de Visitas Íntimas, têm à sua disposição um compartimento da prisão. Ali constroem, por instantes, fragmentos de liberdade. Ali, por instantes, se sentem de novo mulheres. Ali, por instantes, usufruem do prazer supremo da liberdade maior, traduzida no completo abandono do corpo às carícias, ao amor. Ou não. Se duas das reclusas desfrutam por inteiro daquele momento único, uma outra pediu o cancelamento daquelas visitas. Já nada restava do amor pelo marido. Outra ainda vive no pânico do regresso a uma espécie de "primeira vez", por já não ter relações sexuais há seis anos.
Apresentado em vários festivais do mundo, o documentário está agora disponível para visualização livre. Acutilante, sensível, construído com grande sobriedade, "3 Horas para Amar" revela um mundo estranho para a generalidade de quantos, ao viverem "cá fora", jamais imaginarão o tipo de pequenos e grandes dramas pessoais de quem tem de viver "lá dentro".
Quanto a leituras, acabei há dias o belíssimo "Jacarandá", de Francisco Duarte Mangas (1960). Descrever este romance como "belíssimo" não resulta de fácil comodidade expressiva. O belo aqui tem um sentido quase aristotélico, assente numa ideia de construção da harmonia entre as partes e na sua relação com o todo. Comecemos pelo fio da história e já lá iremos à literatura, que é o que se supõe encontrar num bom romance. Mangas, ex-jornalista com vários prémios literários, parte de um facto real. Em maio de 1940 foi assassinado na rua do Bonjardim, no Porto, um velho proprietário e capitalista, como o descreviam os jornais da época. Tratou-se de um crime muito mal esclarecido, que a PVDE-Polícia de Vigilância e Defesa do Estado, antecessora da PIDE, aproveitou para atribuir a um grupo de comunistas e refugiados da guerra civil de Espanha. Até aqui nada de transcendente. Há várias histórias similares, já contadas ou por contar. Não há muitas histórias nas quais a linguagem, o rigor da escrita, a riqueza do vocabulário, a arquitetura narrativa atinja a dimensão alcançada em "Jacarandá". Muito mais do que narrar o sucedido naquele tempo obscuro de um Portugal deprimente, dominado pela intolerância de uma ditadura, interessa ao autor desconstruir o edifício do medo. O medo, como diz Martí, o controleiro dobrado à força de pancada e cavalo marinho, impõe-se como "um animal dominador. Julguei que o domava, abarbatou-me. O medo é um animal estranho. Protege e rouba a coragem. No seu lugar, no lugar da coragem, fica o vazio". Mais adiante, um outro dos presos nas instalações da PVDE, um que não "rachou", isto é, não falou, pergunta-lhe: "Torturaram-te muito?
Muito. O medo apossou-se de mim.
E devorou-te.
Devorou-me, esse animal silencioso.
Que deste tu em troca?
A minha dignidade.".
Foi uma leitura carregada de frases sublinhadas. Envolve-as um evidente sentido poético, uma poderosa capacidade de conjugar o sentido estético com a função da construção frásica. A ficção emerge a partir de um episódio vulgar para se ancorar numa dimensão maior ao convocar o desejo imenso de literatura, a jorrar no fluir das páginas. São momentos como quando um prisioneiro encerrado numa sala onde falta o dia, se descobre vivo, "deitado neste pedaço de noite". Um pouco mais adiante, e após se ter perguntado se terá forças para se levantar, prossegue com o diálogo imaginário: "Tu disseste: olha o jacarandá florido, fica rente à felicidade. Um dia chegarás ao seu coração vegetal, apertado; achas a luz, a claridade das árvores bebidas pela raiz - limpidez resgatada do âmago da terra. Precioso, o teu jacarandá. Dar-me-à luz, a sombra nos dias de estio. Quem imagina árvores atenua a dor, rouba um pouco de tempo à eternidade. Julgam-me cativo e só... e eu viajo no devaneio da terra".
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